Segue texto de minha autoria originalmente publicado no blog anterior no site do Jornal GGN, na data de 02/04/2015.
A gente deixa de acompanhar por pouco tempo as notícias e, quando volta, já se depara com a bizarra notícia de que a CCJ aprovou a PEC 171, que se propõe a alterar a Constituição Federal para reduzir a maioridade penal no Brasil de 18 anos para 16 anos. Francamente, a guinada para a direita que esse país deu é assustadora, puro retrocesso político e social. Qualquer pessoa lúcida, que não seja uma fracassada e ressentida, que gosta de colocar a culpa nos outros pela sua infelicidade, sabe que reduzir a maioridade penal nunca será solução para nada, ao contrário, vai apenas piorar as coisas com o sistema penitenciário que o Brasil possui. Além disso, não existem dados estatísticos de violência que sustentem ou legitimem esse disparate medieval. Vale dizer, adolescentes não são, em nenhuma hipótese possível, autores de crimes violentos em tal magnitude que justifique sequer se pensar em diminuir a maioridade penal, atualmente em 18 anos de idade.
O Direito Penal há muito tempo vive uma crise de legitimidade ou legitimação e aqui eu falo como estudioso do assunto. Todos os dias eu estudo Direito e todos os dias eu estudo Direito Penal. O Direito Penal é a chamada ultima ratio, isto é, a última solução quando todo o resto fracassa. Quando não há meios outros de resolver um problema, tipifica-se a conduta ( = cria-se uma norma penal que descreve um certo tipo de ação ou omissão como crime punível com uma pena). Acontece que essa lógica cada vez mais sofre críticas, pois ela, por si só, não dá conta dos problemas sociais ligados à criminalidade. Apesar de ainda ser necessário (alguns acreditam que não é mais, os abolicionistas penais), o Direito Penal não é panacéia para os problemas da sociedade. Ele não tem esse poder, não foi criado para isso e não pode, jamais, ser a primeira opção. A PEC 171 contraria tudo isso e versa no famigerado populismo penal, a ideia segundo a qual a criminalização das condutas é medida eficaz para conter o crescimento da criminalidade, especialmente o dos crimes violentos. Esquece-se todo um conjunto de políticas públicas fundamentais no enfrentamento ou combate da criminalidade para simplesmente privar as pessoas da sua liberdade de ir e vir, retirando-as do convívio social, sem que as verdadeiras ou mais evidentes causas da criminalidade sejam atacadas. O resultado é um sistema penal que, mal manejado, retroalimenta a criminalidade.
E agora, o Brasil resolveu comprar a inválida ideia de que, prendendo adolescentes de 16, 17 anos, estaremos fazendo a coisa certa para combater a criminalidade. Mandando adolescentes para os presídios brasileiros, verdadeiras “sucursais do inferno” na Terra, estaremos garantindo a eles um processo de ressocialização à altura da dignidade com que devem ser tratados pelo Estado. Isso é simplesmente um bizarro retrocesso. A verdade é que, independentemente da situação dos presídios brasileiros, ainda que fossem os melhores do mundo, adolescentes não devem ser tratados pela legislação penal da mesma forma que adultos que cometem crimes. Adolescentes são pessoas em desenvolvimento que devem ser protegidas pelo Estado. Não é tratando os adolescentes penalmente como adultos que estaremos construindo um país melhor. Ao contrário, a maior chance é a de estarmos regredindo e tornando as coisas cada vez piores.Um Estado que não se preocupa em cuidar dos adolescentes de forma diferenciada apenas mostra que fracassou em seus desígnios civilizatórios, A aprovação da PEC 171 pela CCJ da Câmara dos Deputados foi uma das mais terríveis notícias deste país em anos. Como operador do Direito, advogado militante, sinto-me completamente envergonhado por ser brasileiro numa hora dessas.
Infelizmente, o perfil do Congresso Nacional reflete o da sociedade brasileira, já que são os cidadãos brasileiros que votam e elegem os parlamentares. Para todos os efeitos, uma decisão da CCJ que aprova a constitucionalidade da PEC 171, que, como disse a deputada Maria do Rosário, efetivamente diminui direitos fundamentais previstos na Constituição Federal, passa a ser uma decisão da sociedade brasileira, ainda que tomada por suas instituições políticas. Em suma, se tem reacionários no Congresso é porque tem reacionários na sociedade.
A diminuição da maioridade penal é inaceitável por vários motivos. Configura retrocesso jurídico-social, não tem base na realidade em termos de política criminal, muito menos ainda em termos de política carcerária, endossa a falsa ideia de que é punindo que se resolve problemas de criminalidade os quais notoriamente poderiam ser melhor enfrentados por outros meios e por aí vai.
Querer colocar adolescentes no sistema penitenciário brasileiro parece ser coisa de gente que tem tara pelo mórbido. O pior é que a gente sabe que só quem irá para as penitenciárias são os pretos e pobres. Branco de classe média (não precisa nem ser rico) será tratado com condescendência. E aí, nessas horas, veremos o vergonhoso racismo e preconceito de classe brasileiros darem o ar da sua desgraça. Essa medida tem endereço certo: é mais um instrumento de opressão contra os pobres, majoritariamente pretos, deste país. Quando os defensores da PEC 171 falam em punir adolescentes, entenda-se, adolescentes pretos e pobres dos bairros periféricos. Nunca que esse tipo de gente vai defender punição para adolescente de classe média ou ricos. Esses serão tratados como “meninos de família” que cometeram “erros” banais etc, que seria injusto mandá-los para os presídios etc. Vai ser assim que isso irá funcionar. No dia que o primeiro adolescente branco de classe média for mandado para o presídio, as mães irão abrir o berreiro e logo essa lei cai. É a mesma coisa com a pena de morte. No dia que o primeiro branco de classe média fosse executado, o ethos brasileiro se escandalizaria e a pena de morte seria abolida no outro dia.
Pode fazer uma pesquisa nos “estabelecimentos educacionais” que existem para a internação de menores (art. 112, inciso VI, do ECA). Os brancos de classe média, que estudam em escolas particulares etc, não chegam a 5% do número de internos. Isso é assim não porque eles não cometem atos infracionais. Isso é assim porque a justiça, o ministério público não os tratam da mesma forma e com o mesmo rigor que tratam os menores pobres e pretos. Existe um ódio, um preconceito e uma discriminação muito grandes no Brasil na hora de aplicar a lei penal. Essa é a verdade. Os filhos das classes mais abastadas são protegidos dos rigores da lei. É uma questão de luta de classes.
A participação de menores de idade em situações consideradas crimes no Brasil (chamados de atos infracionais quando praticados por crianças e adolescentes) é muito pequena no número total de crimes, principalmente os praticados com violência ou grave ameaça. Geralmente os defensores ou simpatizantes da diminuição da maioridade penal, de 18 para 16 anos, perguntam sobre a “solução” do “problema”.
Primeiro, a rigor e em termos estatísticos, não há esse “problema”, ele não existe ao ponto de pretender punir adolescentes como se punem adultos quando estes praticam crimes. Segundo, muitas são as causas da violência, que é algo complexo e difícil de ser combatido. No entanto, com relação aos atos infracionais praticados por crianças e adolescentes, existem inúmeras soluções que poderiam diminuir e muito as ocorrências. Por exemplo, investindo cada vez mais na escola de modo que se evite a evasão escolar. Já se sabe há muito tempo que criança que frequenta a escola não só tem menos chances de cometer crimes como tem menos chances de ser vítima de crimes ao longo de sua vida. Outra política importante é investir em reestruturação urbana dos bairros mais sensíveis à criminalidade, criando alternativas para as crianças e adolescentes interagirem melhor com a comunidade, tais como espaços em que atividades culturais, esportivas, recreativas, artísticas, etc, possam ser atrativas e venham a ser praticadas pelas crianças e adolescentes nesses bairros mais sensíveis ao problema da criminalidade.
A família, o Estado, a sociedade, todos têm compromisso para com a proteção às crianças e aos adolescentes. Quando se pensa em punir especificamente os adolescentes, isso equivale a confessar que todo mundo falhou em suas responsabilidades, mas querem dizer que o problema do menor infrator não tem nada a ver com eles, pois é um problema dos adolescentes, que já “compreendem” tudo, “sabem” de tudo e agem praticando infrações porque “querem” ou, quem sabe, porque têm a natureza ruim e devem ser punidos como se adultos fossem. Esse pensamento é típico de quem não quer enfrentar o problema como deve ser enfrentado, de quem se omitiu em ajudar a, pelo menos, diminuir a prática de infrações pelos adolescentes. Em suma, defender a redução da maioridade penal é característica daquelas pessoas que, a par de nao terem cumprido com as suas obrigações nas respectivas áreas de atuação, acham que não têm nada a ver com o problema, o qual não tem jeito e a solução adequada é mandar os adolescentes para os presídios. Quer dizer, a sociedade, a família e o Estado fracassam com as suas obrigações constitucionais e legais e os culpados disso são os adolescentes infratores, vítimas de um estado de coisas que muitas vezes não os trata com respeito e dignidade.
Eu já abri a polêmica nas páginas da grande imprensa que divulgaram a notícia, o que pode ser constatado clicando aqui, que traz notícia do portal G1 sobre a aprovação na CCJ da PEC 171. Nesse debate, não terei papas na língua. As pessoas para quem os direitos humanos são coisas de “defensor de bandido” terão que ler as minhas opiniões contundentes. Penso que ao lidar com essas pessoas, a linguagem precisa ser a mais clara e pertinente possível, o que passa necessariamente por denunciar quem eles verdadeiramente são, o que defendem, o que querem, como pensam etc. Já comecei logo dizendo que quem defende a redução da maioridade penal, na forma proposta pela PEC 171, possui perfil compatível com quem tem tara pelo mórbido, sofre de algum distúrbio, tem desvio de conduta. Essa foi logo a declaração que abriu o meu post, que já chamou a atenção, sendo essa, claro, a intenção. Eu vou logo no gogó, incomodo logo.
O problema é que as vítimas que apenas se preocupam com o problema da violência, eventualmente cometida por menores infratores, quando são atingidas, exigem, como medida para resolver o problema, mais punição. Por que não se preocupam em encontrar outras soluções? Por que essa necessidade de mandar prender em penitenciárias comuns os adolescentes? Ora, a resposta parece mesmo ser a de descontar nos adolescentes infratores toda uma série de frustrações pessoais ou então uma certa tara por cooperar com o pior. No fundo, a explicação para a proposta bizarra, inadequada, inconveniente e inválida da PEC 171 é um misto de tudo isso, ressentimento, frustrações pessoais, desinformação e falta de compromisso sério com a proteção dos direitos fundamentais e com a melhoria da sociedade brasileira.