A importância da contribuição russa na história das ideias

A intelectualidade russa sempre causou verdadeira inveja nos europeus ocidentais, que ficavam embasbacados sobre o quanto ela era sofisticada para um país que, no grosso do modo de ser social e político, facilmente poderia ser considerado “atrasado” para padrões ocidentais.

A questão é que a aristocracia russa era de primeiríssima categoria quando o assunto era a busca pelo conhecimento (ciência e filosofia) e a apreciação de padrões estéticos (arte).

Isso se explicava, em grande parte, porque a Rússia sempre foi um dos países mais ricos do mundo. Ser rico num país muito rico era uma vantagem dos russos que os europeus ocidentais nunca engoliram com naturalidade.

Edmund Wilson, um intelectual da mais alta elite americana, autor do clássico ensaio sobre a história do socialismo europeu, cujo título em inglês é “To The Finland Station” (no Brasil, “Rumo à Estação Finlândia”) percebeu isso de plano.

Os russos educados não só entendiam tudo o que a elite intelectual ocidental europeia falava mas iam além. Como tinham senso crítico e capacidade intelectual inovadora, criavam os seus próprios conceitos e ideias, como, por exemplo, a ideia de intelligentsia, que é a do intelectual/artista engajado politicamente, que visa modificar a realidade social na qual estava inserido.

Perceba que a ideia russa de intelligentsia não é uma ideia que meramente se confunde com a de “intelectual”, como explica em seus ensaios o filósofo judeu de origem letão, radicado na Inglaterra desde pequeno, Isaiah Berlin, um dos maiores historiadores das ideias, especializado em histórias das ideias russas. Era um plus que exigia o engajamento e a a capacidade de modificar a realidade política e social circundante.

Na Rússia, a partir de um certo momento do século XIX, nenhum intelectual/artista era respeitado se não tivesse esse impacto ou engajamento político-social transformador.

Essa autonomia e originalidade intelectual russa sempre foram observadas nas mais variadas áreas do conhecimento, inclusive naquelas áreas em que os europeus ocidentais se julgavam dominantes, como na área das ciências naturais ou exatas. Os russos se destacaram na matemática, física, medicina, química etc, tanto quanto os europeus ocidentais e, muitas vezes, até mais.

Por exemplo, o matemático autor do que durante muitos anos foi a base da matemática, que era a teoria dos conjuntos (depois chamada de teoria ingênua dos conjuntos, após o advento do Paradoxo de Russell), era um matemático russo chamado Georg Cantor.

Mesmo com a necessidade de adaptação em relação aos seus axiomas fundamentais, a matemática moderna não existiria sem a teoria dos conjuntos de Cantor, um dos maiores gênios da humanidade. Cantor morreu louco num hospício, o que nunca teve nada a ver com os paradoxos que afetaram a sua maior obra intelectual. Seus problemas psiquiátricos eram inerentes à pessoa que ele era.

Do ponto de vista lógico, a teoria dos conjuntos lançada por Cantor é uma obra-prima do intelecto humano, o que não é afastado pelo paradoxo encontrado pelo genial Russell aos 28 anos de idade. Apenas se aprimorou o que Cantor concebeu.

Eu tive um professor de matemática que costumava dizer que quem não era bom em teoria dos conjuntos tinha déficit intelectual. Simplesmente porque toda a linguagem lógica mais básica que a matemática pode gerar, e lógica e matemática são coisas diferentes, pode ser descrita pela teoria dos conjuntos.

Bertrand Russell tinha tanta noção disso que a sua maior obsessão enquanto matemático, após descobrir o seu famoso paradoxo (o conjunto que contem todos os conjuntos que não contém a si mesmo, o que resultava num paradoxo sobre a existência do conjunto R – de Russell, pois ele existia e ao mesmo tempo não existia, uma vez fixadas as suas premissas) foi a de descrever a matemática numa linguagem puramente lógica.

Aparentemente, Russell abandonou a matemática e passou a se dedicar à filosofia quando viu que Kurt Gödel provou, matematicamente, que a meta que ele perseguia era matematicamente impossível de ser atingida, o que fez com os seus famosos teoremas da incompletude.

Ou um sistema matemático de axiomas é consistente ou é completo. As duas coisas juntas são simplesmente impossíveis de existir.

Isso significa dizer que um sistema de axiomas matemáticos fechado que seja consistente pode responder todas as perguntas que ele propõe, mas não todas as questões possíveis ou suscitáveis (isto é, fora dos axiomas mas possíveis de serem suscitados, o que denota a sua incompletude), como a teoria dos conjuntos moderna de Zermelo-Fraenkel.

Por outro lado, um sistema matemático de axiomas aberto que se propõe a responder todas as questões suscitáveis, como a teoria ingênua dos conjuntos de Cantor, não pode ser consistente com as suas premissas. Ele cai em determinado momento (como aconteceu com a teoria dos conjuntos de Cantor a partir do Paradoxo de Russell).

Perceba que nem mesmo a teoria dos conjuntos de Zermelo-Fraenkel, a que afastou o Paradoxo de Russel, se salva da condenação ocasionada pelo teorema de Kurt Gödel, que simplesmente se aplica a todo e qualquer sistema de axiomas matemáticos, menos os mais triviais. Isso foi provado matematicamente.

A única alternativa a um retorno ao que se conhece na história da matemática, a mais dramática história da ciência que existe, como “paraíso de Cantor”, quando a teoria ingênua dos conjuntos de Cantor era considerada infalível e simplesmente perfeita, é a hipótese de que possam existir sistemas matemáticos de axiomas fechados e consistentes que sejam complementados por outros.

As implicações abstratas que isso gera são de tal magnitude que é como se pudéssemos cindir a realidade em várias dimensões, onde sistemas matemáticos com axiomas próprios possam ser completados por outros sistemas axiomáticos.

Isso é uma tese que existe mas de difícil senão impossível comprovação com as ferramentas matemáticas de que dispomos atualmente.

Seria necessário admitir que existem dimensões lógicas e matemáticas com regras próprias e que, além disso, possam complementar os sistemas axiomáticos que construimos com as ferramentas de que dispomos.

Por enquanto, isso está mais para a ficção científica do que para a realidade científica. Parece que teremos sempre que nos contentar em estar atrás do sentido da realidade em que vivemos, uma coisa dialética sem fim.

Deixe um comentário

Arquivado em Ciência, Cultura, História

Deixe um comentário