A ratio Anselmo e os argumentos de Leibniz sobre a existência de Deus

Uma parte muito interessante da filosofia é a que trata da obra de pensadores que, lançando mão da lógica formal, construíram argumentos que têm a finalidade de comprovar ou demonstrar a existência de Deus.

É comum e até mesmo esperado que todos esses argumentos sofram críticas que demonstram falhas na construção do encadeamento lógico ou demonstrem que eles não permitem concluir pela validade da demonstração.

Um aspecto que sempre é discutido sobre o assunto é se a lógica puramente formal pode ser uma ferramenta válida e eficaz para demonstrar a existência de Deus, uma vez que se trata de estabelecer relações entre premissas e conclusões, tratando de meras ideias que trabalham com conceitos abstratos sem qualquer vínculo necessário com a realidade concreta.

Em outras palavras, é possível perfeitamente afirmar que não é porque se consegue construir um argumento válido do ponto da vista da lógica formal que ele necessariamente reflete o que existe na realidade. Os defensores da lógica formal podem se defender dessa objeção dizendo que ela é a única ferramenta capaz de permitir uma análise da possibilidade da existência de Deus.

Pessoalmente, eu não acredito que Deus exista, o que é suficiente para me classificar como ateu, e faço isso porque, basicamente, considero a ideia da existência de Deus sem sentido, ilógica, logo, eu não vejo problemas na utilização da lógica formal, como muitos filósofos e matemáticos fizeram ao longo da história das ideias, para, ao contrário, tentar demonstrar a existência de Deus.

O argumento ontológico de Santo Anselmo para provar a existência de Deus é muito conhecido entre os filósofos.

O filósofo alemão Immanuel Kant foi quem o classificou como “ontológico” porque derivava a priori do conceito de Deus criado por Santo Anselmo, sem lançar mão da experiência ou de fatos existentes na realidade, isto é, a posteriori, para definir o próprio saber.

Em outras palavras, o próprio conceito de Deus de Santo Anselmo provaria a existência de Deus. E o que diz o conceito de Deus de Santo Anselmo, conhecida entre os escolásticos como ratio Anselmo ou a razão de Anselmo?

O argumento é simples: como a ideia ou a concepção intelectual de Deus é que Ele é o Ser mais perfeito que existe, “o Ser acima do qual não se é possível pensar nada maior”, ele necessariamente deve existir não apenas em pensamento mas também na realidade, pois, se existisse apenas em pensamento e não na realidade, não seria “o Ser acima do qual não se é possível pensar nada maior” nem o Ser mais perfeito que existe.

Em suma, uma vez que existência é mais perfeita do que não existência, a própria ideia de Deus implica que Ele existe.

O argumento é inegavelmente brilhante mas existe um grave problema que coloca a conclusão em suspensão, que é a premissa de Deus enquanto o Ser mais perfeito que existe, que não é algo exatamente compreensível em sua essência, dada a abstração da afirmação.

Essa premissa apenas tornaria o argumento não refutável, o que não significa que seja verdadeira sua conclusão, como explicou o filósofo inglês Colin McGinn numa entrevista a Jonathan Miller no programa da BBC chamado “As Fitas do Ateísmo”. Miller infelizmente faleceu em novembro de 2019, aos 85 anos.

O filósofo e matemático alemão Gottfried Wilhelm Leibniz, criador, junto com Isaac Newton, cada um trabalhando sozinho, do cálculo diferencial e integral, ramo da matemática dos mais importantes, defendeu o argumento ontológico de Santo Anselmo e criou regras lógicas que visavam demonstrar que a ideia de Deus é possível e que era real.

Leibniz formulou o argumento ontológico de maneiras distintas mas que sempre giravam em torno de uma ideia central.

O primeiro argumento é bem simples:

I – Deus é por definição um ser absolutamente perfeito.

II – Existência é uma perfeição.

III – Portanto, Deus existe.

O segundo argumento amplia o primeiro ao acrescentar a ideia de existência necessária:

I – Deus é por definição um ser absolutamente perfeito.

II – Existência necessária é uma perfeição.

III – Portanto, Deus necessariamente existe.

O terceiro argumento de Leibniz fala em “Ser necessário”, sem mencionar a perfeição ou Deus:

I – Um ser necessário é por definição um ser que necessariamente existe.

II – Um ser que necessariamente existe, existe.

III – Logo, um ser necessário existe.

Uma ideia central nos argumentos de Leibniz é a possibilidade de Deus.

Na ausência de provas em sentido contrário, deveria se assumir que Deus existe. A ideia é exposta na argumentação abaixo:

I – Se é possível que Deus exista, então ele existe.

II – Na ausência de provas contrárias é mais razoável supor que uma sentença da forma “é possível que…” seja verdadeira ao invés de falsa.

III – Não há prova que “é possível que deus exista” seja falsa.

IV – Portanto, é mais razoável supor a sentença “é possível que deus exista” seja verdadeira ao invés de falsa.

V – Logo, é mais razoável supor que Deus exista do que Deus não exista.

Para Leibniz, Deus é um ser necessário ou um ser cuja não existência é impossível.

Ele desenvolveu um argumento modal da prova da possibilidade de Deus baseado na premissa de que “Se um ser necessário não é possível, nenhum ser é possível”.

O argumento modal da prova da possibilidade de Deus, a partir da qual ele pretende provar a existência de Deus, é o seguinte, como apresentado por Nicholas Jolley em “The Cambridge Companion to Leibniz” (Cambridge University, 1995. Páginas 363):

I – Se um ser necessário não é possível, nenhum ser é possível.

II – Se a definição de um conceito é não contraditório, então um ser que exemplifique esse conceito é possível.

III – Mas existem exemplos de definições de conceitos que são não contraditórias. (um círculo é definido como uma figura plana tendo todos os seus pontos equidistantes do centro e nós sabemos a priori que essa definição é não contraditória).

IV – Assim, um ser que exemplifica o conceito de circulo é possível.

V – Portanto, algum ser é possível.

VI – Logo, um ser necessário é possível.

A partir do que ele considera uma prova da possibilidade de um “Ser perfeito” ou “Ser necessário”, ele conclui que Deus necessariamente existe:

“Assim, somente Deus (ou o Ser necessário) possui este privilégio: que se é possível tem de existir necessariamente. E como nada pode impedir a possibilidade do que não contém nenhum limite, nenhuma negação, e, consequentemente, nenhuma contradição, isto basta para conhecer a existência de Deus a priori.” (LEIBNIZ, Princípios de filosofia ou Monadologia. Tradução, introdução e notas de Luís Martins. Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 1987. Páginas 52 e 53).

Este post foi baseado nas informações contidas no artigo intitulado “A INTERPRETAÇÃO DO ARGUMENTO ONTOLÓGICO SEGUNDO LEIBNIZ”, de autoria de Andréa Maria Cordeiro, que na época era mestranda de filosofia da PUC/RS.

O filósofo inglês Colin McGinn faz uma crítica, que eu considero procedente, ao argumento ontológico na entrevista que concedeu a Jonathan Miller no programa da BBC chamado “As Fitas do Ateísmo”.

Segue o link da parte 1 da entrevista:

Parte 2, onde se concentra o cerne da crítica ao argumento ontológico de Santo Anselmo:

Tem que ver a entrevista toda senão não vai entender o ponto inicial da parte 2.

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Arquivado em Filosofia, Lógica

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