A abordagem impessoal judaica acerca do antissemitismo

Tendo em mente a reedição da polêmica sobre as obras de Monteiro Lobato, algo que se arrasta no Brasil há cerca de 20 anos sem uma definição, época em que começaram a brotar as críticas sobre trechos racistas de suas obras, tenho que dizer que quem melhor refletiu, escreveu e produziu obras sobre a opressão, o ódio, a intolerância, o preconceito e a discriminação, com maturidade intelectual, foram os autores judeus, principalmente quando falavam de antissemitismo, ou seja, sobre uma realidade que os tocava de perto enquanto vítimas.

Essa é uma daquelas verdades indiscutíveis, imemoriais, pelo menos para quem tem um pouco de cultura e pôde perceber, nas obras artísticas de autores judeus, como eles sempre lidaram com isso enquanto, antes de tudo, meramente seres humanos, daí um certo distanciamento do autor judeu com a judeidade, quase alguém falando de si mesmo em terceira pessoa.

Os judeus foram perseguidos durante séculos. Desde o nascedouro do Cristianismo, que surgiu concomitantemente às raízes do que, séculos depois, viria a ser conhecido como antissemitismo (ódio contra os judeus, no sentido semântico específico mais aceito), quando surgiu a acusação de serem deicidas, palavra que significa “assassinos ou matadores de Deus”, por causa do julgamento de Jesus Cristo que precedeu a crucificação, a partir do qual os judeus passaram a ser acusados como responsáveis pela morte do Messias.

Aqui cabe um adendo. O julgamento de Jesus Cristo, pela leis então vigentes entre os descendentes das 12 tribos, é absolutamente nulo porque foi finalizado após o pôr do Sol da sexta-feira e isso era proibido entre os judeus, que consideram o sábado, iniciado após o pôr do Sol de sexta-feira e indo até o pôr do Sol do sábado, um dia sagrado, o que mostra que Jesus foi provavelmente um dos maiores injustiçados de todos os tempos em termos de devido processo legal.

A acusação de deicidas, que historicamente pesou contra os judeus, é o berço do antissemitismo moderno como conceito típico do século XIX, uma época da história humana pródiga em conceitos nas mais diversas áreas, como comunismo, racismo, colonialismo, imperialismo (uma qualificação política do colonialismo) etc.

O fato é que é impressionante como os autores judeus falam de tudo relacionado a isso com extrema dignidade e sem desespero, pelo menos aqueles que não querem capitalizar politicamente em cima do antissemitismo, famosa carta albergada pelos sionistas europeus sobreviventes do Holocausto que fundaram Israel.

Para se ter uma ideia do que eu estou falando, se você ler um autor judeu como Primo Levi, judeu italiano que esteve em Auschwitz e sobreviveu, verá como o seu relato é puramente humano, quase asséptico na perceptível ausência de uma indignação moral que se esperaria de uma vítima inserida num grupo específico, alvo primordial dos nazistas em sua “Solução Final”. Raul Hilberg, provavelmente o maior historiador sobre o Holocausto como fato histórico, ele próprio um judeu sobrevivente do genocídio, também escreveu sobre o assunto dessa forma objetiva.

Primo Levi não escreveu os seus relatos autobiográficos sobre o Holocausto como uma vítima judia lamentando toda aquela maldade, desumanidade, brutalidade. Não que ele diminua tudo isso, ao contrário, ele descreve muito de perto os horrores do Holocausto.

O que chama atenção nos relatos de Primo Levi é como ele trata tudo aquilo como uma grande maldade, uma grande perversão praticada contra o ser humano, não especificamente contra os judeus.

Nas obras de Levi, os judeus são, antes de qualquer coisa, seres humanos vítimas do que de mais repulsivo se pôde conceber, que é o extermínio implementado em escala industrial, o que acontecia nas câmara de gás dos campos de concentração, que funcionavam ao som das maiores obras-primas da música clássica alemã (isso mesmo que vc entendeu: os judeus iam para as câmaras de gás escutando música clássica alemã).

Essa característica da obra de Primo Levi existe também, de modo específico ou adaptável às circunstâncias, em vários outros autores judeus, como Marcel Proust, o célebre escritor francês.

Proust, que provavelmente criou o eufemismo “descendente de judeu” para não usar simplesmente “judeu”, ele próprio judeu ou descendente de família judaica, narra, nos romances de “Em Busca do Tempo Perdido” (7 livros, publicados ao longo de 15 anos), a estranheza que ser judeu causava nas altas rodas parisienses dos fins do século XIX e início do século XX, França que talvez seja um dos países mais antissemitas da história, talvez apenas abaixo dos nazistas alemães.

Para os franceses da elite sofisticada de Paris, cidade ícone da cultura ocidental, os judeus eram meros descendentes de tribos formadas por pastores bronzeados pelo Sol dos desertos do Oriente Médio, o que, colocando de lado o racismo explícito da ideia, nos faz lembrar que os judeus nunca foram um povo ocidental. Os judeus sempre foram orientais, do Oriente Médio. povo de origem semita, nada a ver com a Europa.

Na Europa, rompendo com suas origens tribais, os judeus puderam ser assimilados pelo Ocidente, aprendendo línguas que comunicavam muito mais ideias do que o diminuto léxico de suas línguas originais (o ladino ou judeu-espanhol, por exemplo, falado pelos judeus sefarditas da Espanha, não tinha mais do que cinco mil palavras), costumes, valores, filosofia e ciências, ideias que dificilmente brotariam numa cultura rabínica, supersticiosa e isolada em guetos, como durante séculos eles foram confinados a viver em países europeus importantes, inclusive na Espanha, onde viviam ondas de idas e vindas de tolerância, assimilação e perseguição, e onde, no apogeu, constituíram a maior comunidade judaica que se tem notícia, na essência, até hoje (“Sepharad“, a palavra com que os judeus ibéricos se referiam à Espanha, no hebraico adaptado do aramaico antigo, significa “terra prometida”, como nos lembra o escritor argentino Jorge Luis Borges).

Outro escritor judeu, Elias Canetti, Nobel de Literatura de 1981, escritor judeu sefardim ou sefardita de língua alemã, cuja família de ricos comerciantes judeus, tanto por parte de pai (família Canetti) como por parte de mãe (família Arditti), havia se radicado originalmente nos Balcãs, mais precisamente na Bulgária, na cidade de Rutshuk, às margens do Rio Danúbio, também exibiu essa característica de abordar a judeidade como algo alheio ao cenário, a mesma sensação que se tem de alguém falando de si mesmo em terceira pessoa, com a peculiaridade de fazer isso sem o menor sinal emotivo de identificação. Para escritores judeus como Canetti, o judeu é apenas o outro, como qualquer outro ser humano.

Eu considero isso muito avançado, afinal, somos todos seres humanos.

Lembro-me do trecho do segundo volume das elogiadíssimas memórias de Canetti, o clássico “Uma Luz em Meu Ouvido”, que narram quando ele cursava a graduação em Química em Viena e tinha uma amiga, também judia, filha de família de riquíssimos banqueiros de Kiev, Ucrânia (a Ucrânia é repleta de comunidades judaicas; Trotski, por exemplo, é judeu ucraniano, assim como o grande escritor Isaac Babel), com quem conversava sobre os mais variados assuntos, não só sobre as atividades acadêmicas, mas também sobre arte e cultura em geral e, principalmente, a obsessão de ambos, sobre três judeus da Galícia polonesa que cursavam com que ele Química.

Os judeus poloneses lembrados por Canetti, seus companheiros de classe em química experimental, tinham nomes muito conhecidos no braço ashkenazi ou asquenazi em português (o outro braço judaico, de origem centro-europeu e hoje majoritário entre os judeus de todo o mundo): Alter Horowitz, Josias Kohlberg e um estudante que simplesmente Canetti disse que jamais soube o seu prenome, apenas o sobrenome, Backenroth.

Esse capítulo das memórias de Canetti é extremamente poético. Gira em torno da admiração que ele e sua amiga, de nome Eva Reichmann, ambos de famílias judias muito ricas, apesar da família dela ter perdido parte da riqueza após a revolução russa, tinham pelos judeus poloneses, evidentemente não tão ricos quanto eles, Canetti e a amiga judia ucraniana.

Bem, todos eles eram judeus numa cidade que, apesar de muito cosmopolita, que era e sempre foi Viena, tinha uma tradição elitista histórica. Inevitável que sofressem preconceito e isolamento.

O que chamou a atenção de Canetti e de sua amiga Reichmann nos 3 judeus da Galícia polonesa era o quanto eles eram próximos e, acima de tudo, o quanto Horowitz e Kohlberg tratavam Backenroth com reverência, falando com ele de forma diferente com que falavam entre si.

Canetti, em suas memórias, disse que era como se eles o respeitassem em demasia, não por algo extraordinário que ele teria como qualidade pessoal, mas sim porque ele parecia mais inocente e precisava ser protegido. Kohlberg e Horowitz sabiam lidar com as ofensas antissemitas, que se iniciavam desde a hora da chamada, quando os seus nomes pronunciados causavam risos na turma, e se preocupavam em proteger Backenroth disso.

Canetti disse que a maior curiosidade de todos era ouvir a voz de Backenroth, que viva em silêncio, o que era um claro sinal de que não sabia falar o dialeto alemão vienense.

Canetti escreveu que todos na sua turma, inclusive os professores, o tratavam dessa forma, mesmo sem o conhecê-lo, porque ele tinha um semblante tão bonito e puro, que lembrava a de um santo pintado pelos maiores mestres da pintura. Canetti dizia que ele lembrava o Jesus como retratado classicamente.

Nem os estudantes austríacos mais antissemitas tinham coragem de destratá-lo. Quando ele surgia no recinto, todos silenciavam e o respeitavam, ora acenando com a cabeça, ora rindo timidamente em sinal de simpatia. Ou seja, ele tinha uma presença realmente imponente.

Canetti disse que não conseguia entrar na sala de aula sem se certificar antes de que Backenroth estava lá, ele que, até o momento de conhecê-lo, sempre tendeu a ridicularizar conceitos como sublimidade ou brilho pessoal diferenciado.

O relato é impressionante.

Canetti escreveu que, ao vê-lo de avental branco nas aulas de química experimental, manuseando os instrumentos químicos, aquela imagem não o convencia, como se esperasse pelo dia em que ele largaria tudo e revelaria sua verdadeira imagem.

A única pessoa com quem ele se permitia conversar sobre Backenroth era a sua amiga, Eva Rechmann, a judia de Kiev. Ela dizia: “Você fala como se ele fosse doente. Mas ele não é doente. Apenas é belo. Por que será que você fica tão impressionado com a beleza masculina?”.

O jovem Canetti respondia: “Masculina? Masculina? Ele tem a beleza de um santo. Não sei o que ele procura aqui. O que tem um santo a procurar num laboratório de química? Ele sumirá de repente.”

Os dois conversavam sobre os mais variados assuntos, literatura, química, tarefas acadêmicas, música etc. Mas nunca abandonavam Backenroth, por quem eles tinham especial admiração, mesmo sem nunca falar com ele.

Canetti descreveu Reichmann como uma mulher grande e de beleza exuberante. Reichmann se recusou com obstinação à ideia de que ela deveria falar com Backenroth. Canetti tentava convencê-la dizendo que, ela, por saber falar russo, saberia falar entender polonês.

A ideia de todos serem judeus, apesar de subjacente, não existia propriamente para eles. Reichmman negava o contato com Backenroth sugerido por Canetti dizendo que seria um ultraje para ele, polonês, que ela se dirigisse a ele em russo. Explicava que os poloneses tinham grande orgulho da sua língua materna e que ela não passaria esse vexame, afinal, ela tinha Backenroth em tão alta conta quanto Canetti.

Reichmann achava que, pela forma como Backenroth era tratado por Horowitz e Kohlberg, seus únicos amigos próximos, ele talvez fosse apenas um “robbe chassídico”, um título respeitoso usado para o líder de um grupo judeu kassidim, siginificando também um professor numa escola judaica, mas apenas ainda não sabia disso.

Canetti, na maturidade, relembra que essas conversas com Reichmann eram apenas uma indefinição sentimental do que ambos sentiam um pelo outro, sendo Backenroth o que os atraía a ficarem juntos, cada vez mais. O receio que ambos sentiam sobre a hipótese dele sumir de repente nada mais era do que um reflexo do que poderia os separar de vez.

Numa certa manhã, Canetti chegou à sala de aula e, para a sua aflição, Backenroth não estava em seu lugar de costume. Ele pensou que ele estivesse atrasado mas temeu que estivesse errado. Nesse momento, ele percebeu que sua amiga, Eva Reichmann, estava muito mais apreensiva e inquieta do que ele, evitando olhá-lo.

De repente, Reichmann falou: “os três não vieram. deve ter acontecido alguma coisa”. Os lugares de Kohlberg e Horowitz também estavam vazios, o que havia passado despercebido por Canetti.

Ao contrário de Canetti, Reichmann não o via tão isolado. Ela achava que eles três sempre andavam juntos, então, se os três não estavam, não haveria de ser nada demais.

Isso a tranquilizava, apesar da evidente apreensão em seu semblante. Ela nunca quis admitir o isolamento de Backenroth que Canetti sempre temeu em suas conversas com ela. Canetti, para amenizar a apreensão de Reichman, soltou: “eles devem estar em alguma cerimônia religiosa.”

Nesse momento, Canetti passou de pessimista para otimista, como se se recusasse a acreditar que algo de ruim houvesse acontecido. Os papeis se inverteram. Reichmann passou a ficar pessimista: “Algo aconteceu com ele e os outros dois estão com ele.”

Canetti perguntou: “Será que ele está doente?” e completou, percebendo a falta de sentido do que havia dito: “mas isso não seria motivo para a ausência dos outros dois.”

Reichmann balbuciou: “Está bem. Se ele estiver doente, um dos dois cuidará dele e o outro virá ao laboratório.”

Canetti retrucou: “Não. Aqueles dois não se separam nunca. Vc já viu um deles fazer alguma coisa sem o outro?”, complementando: “deve ser por isso que eles moram juntos”, para a perplexidade de Reichmann, que falou: “Quanta coisa você descobriu! Você é investigador?”

Canetti explicou: “Uma vez eu os segui e vi que Kohlberg e Horowitz moram juntos e Backenroth mora três casas adiante. Os dois se despediram dele cerimoniosamente e depois voltaram para casa, como se não o conhecesse.”. Reichmann curiosa: “Por que vc fez isso?”

Canetti respondeu: “Eu queria saber se ele morava só. Talvez, pensei, ele finalmente ficasse só, então de repente eu estaria ao seu lado, como que por acaso, e o saudaria. Eu fingiria surpresa, ele realmente ficaria surpreendido, e assim certamente começaríamos a conversar.”

Eis que Reichmann perguntou: “Mas em que língua?”.

Canetti “Isso não é difícil. Posso entender-me com pessoas que não conhecem uma palavra em alemão. Eu aprendi isso com meu avô.”

Reichmann contestou: “Vc fala com as mãos. Isso não é bonito. Não é do seu feitio.”

Canetti ponderou: “Em outras ocasiões eu não o faço. Mas assim teríamos quebrado o gelo. Você sabe há quanto tempo eu desejo conversar com ele!”.

Reichmann, com ar de superior, disse: “Talvez eu devesse tê-lo tentado em russo. Eu não sabia que vc fazia tanta questão.”

E assim eles continuaram a falar sobre Backenroth mesmo quando ele estava ausente pela primeira vez. Passou-se o tempo, eles mudaram de assunto, mas não adiantava fingir um para o outro. Ambos estavam apreensivos em saber o que aconteceu para ele não estar lá, no seu lugar de sempre.

Apesar de Canetti ter tentado desviar a atenção falando sobre um livro de literartura russa que havia começado a ler, Reichmann não se aguentou: “Estou me sentindo mal, de tanto medo.”

Neste momento surgiu na sala o professor Frei, o único que pronunciava os nomes dos judeus da Galícia polonesa com respeito, seguido do seu habitual séquito, só que, dessa vez, aumentado, quatro ao invés de duas pessoas.

Fez um sinal imperioso para que os alunos se aproximassem. Esperou um pouco até que todos estivessem perto e disse: “Aconteceu um caso triste. Tenho de lhes dizer. O Sr. Backenroth envenenou-se esta noite com cianureto.”

Frei ficou parado alguns instante, sacudiu a cabeça e disse: “Parece que ele era muito solitário. Nenhum dos senhores o percebeu?”

Ninguém respondeu. A notícia era horrível demais e todos se sentiam culpados, ainda que ninguém algum dia o houvesse feito coisa alguma. Esse era, no fundo, o problema: ninguém tentara fazer alguma coisa.

Tão logo o professor Frei deixou a sala, Eva Reichmann chorou soluçando de forma tão forte que parecia haver perdido um irmão. Ela não tinha um irmão mas agora havia perido o irmão mais querido que alguém podia ter.

Canetti percebeu, neste momento, que algo havia acontecido entre eles, apesar de, em comparação com a morte do jovem Backenroth, aos 21 anos, isso pouco significava. Ela sabia, tanto quanto Reichmann, que em suas conversas sobre Backenroth, ambos haviam abusado da sua solidão.

Mês após mês ele estivera entre ele e ela. A beleza dele os estimulara. Ele foi o segredo de ambos, que guardavam entre si, mas também dele, que não sabia o quanto ele era importante para Canetti e Reichmann.

Eles nunca falaram com Backenroth, dando inclusive inúmeras evasivas para que justificassem esse silêncio. A amizade entre Canetti e Reichmann se destroçou no sentimento de culpa de ambos. Ele nunca se perdoou, tampouco ela.

Canetti, ao falar na maturidade sobre essa passagem de sua vida, lembra que “quando hoje, a lembrança me traz o som da frase de Fräulein Reichmann, cujo tom estranho me enfeitiçara, sou tomado pelo rancor, e sei que perdi a única oportunidade de salvar Herr Backenroth: em vez de brincar com ela, eu deveria tê-la persuadido a amá-lo.”

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