O Ocaso de Elias Canetti

Voltando a falar do Nobel de Literatura de 1981, Elias Canetti, gostaria de deixar registrado o quanto o ser humano é suscetível de análises negativas em termos de caráter. No final da vida ou de sua carreira literária brilhante, Canetti se expôs pessoalmente de uma forma tão comprometedora que é perfeitamente possível vislumbrar que ele sofreu um autêntico ocaso.

Canetti, escritor judeu sefardim de língua alemã, escreveu grandes livros. Os escritores brasileiros pós-modernos que tinham uma certa originalidade e notável força literária, como Rubem Fonseca e Ignácio de Loyola Brandão (ainda vivo), o tinham em alta conta.

Ele escreveu um único monumental romance, publicado em 1935, sua estreia como escritor, traduzido para todas as línguas como “Auto-De-Fé” (em alemão, o romance se chama “Die Blendung”, que se poderia traduzir em português como “A Cegação” ou “O Ofuscamento”). O grande escritor brasileiro Ignácio de Loyola Brandão, particularmente, escreveu sobre a experiência de ler “Auto-de-Fé” quando esteve em Berlim no início dos anos 80, fato narrado no seu livro “O Verde Violentou o Muro”.

“Auto de Fé” é um dos maiores registros literários do ambiente centro-europeu anterior à II Guerra Mundial, que já mostrava as características sociais que levariam o mundo à loucura do maior conflito bélico da história da humanidade.

Ele também escreveu um tratado antropológico único em seu estilo, chamado “Massa e Poder”, um livro que ele escreveu durante 35 (trinta e cinco) anos, extremamente denso, diferente de tudo o que você pode ler em qualquer lugar. Canetti decidiu escrever sobre os fenômenos de massa e poder quando testemunhou, in loco, manifestações ocorridas em Viena, cidade em que ele residia na época e estudava a graduação do curso de Química, profissão que nunca exerceu, em 15 de julho de 1927, em repúdio a uma sentença de absolvição dos acusados da mortes de operários. Os trabalhadores reagiram principalmente ao escárnio do partido do governo em considerar a sentença justa, mais até do que a sentença em si.

Canetti presenciou os protestos e sentiu a força das massas e o quanto era um fenômeno diferente de tudo o que ele presenciou, além de se relacionar estritamente com a noção de poder. Dessa experiência, da qual ele nunca esqueceu, nasceu a sua obsessão em entender e estudar os fenômenos de massa e poder.

“Massa e Poder” é um estudo, extremamente erudito, sobre os movimentos de massa e sobre o poder, analisado nas mais diversas esferas sociais e culturais ao longo da história, absolutamente fascinante.

“Massa e Poder” é completamente diferente de tudo o que você já leu até hoje que possa ser, de longe, comparado com o livro. Provavelmente você ficará fora da realidade por alguns dias depois de lê-lo. Isso aconteceu comigo, quando eu li a tradução da UnB e depois da Cia das Letras.

Os estudiosos, cientistas sociais e intelectuais em geral que se aventuraram a ler “Massa e Poder” notaram uma das maiores características do opus magnum de Canetti que é o seu estilo próprio, original, singular, em abordar o tema do livro, sem beber em nenhuma fonte anterior.

A originalidade de “Massa e Poder” é tão grande que muitos apontaram que ele teria criado uma nova disciplina em ciência sociais, que é aquela que analisa as patologias antropológicas da sociedade, de forma profunda e com linguagem literária singularmente imagética.

Canetti também escreveu várias peças de teatro únicas, como a mais conhecida, chamada “Comédia da Vaidade” (no alemão “Komödie der Eitelkeit“), sempre com uma crítica social pertinente, além de ensaios literários de grande categoria, máxime uma obra-prima sobre Kafka, presente na coletânea de ensaios “A Consciências das Palavras”.

Sobre a peça “Comédia da Vaidade”, vale lembrar de um episódio, no mínimo, curioso, contado por Canetti, quando leu a peça pela primeira vez para um restrito círculo intelectual em Viena. Canetti contou, numa passagem do terceiro volume das suas memórias, “O Jogo dos Olhos”, uma história sobre a leitura da comédia de costumes “Comédia da Vaidade”, num certo círculo intelectual de Viena que contou com a presença de James Joyce, então um jovem escritor irlandês em busca de fama e já conhecido por alguns intelectuais europeus.

Essa peça de Canetti se tornou um clássico com o tempo e, numa de suas mais famosas passagens, uma das personagens se barbeia sem precisar usar espelhos. Depois da leitura, Canetti foi apresentado a James Joyce, cujo único comentário sobre a peça foi um arrogante “eu me barbeio sem usar espelhos”.

Na hora, Canetti percebeu que ele, de quem se dizia dominar muitos idiomas, não tinha entendido nada da peça, toda ela escrita num autêntico dialeto vienense, e somente tinha entendido a parte em que a personagem se barbeava sem usar espelhos.

Ou seja, o “gênio” Joyce se sentiu intelectualmente inferiorizado ao não entender nada da leitura, feita no dileto alemão falado em Viena. A história da literatura do século XX consagrou James Joyce como um grande escritor, mas desconfio que muito disso vem de um hype pouco justificável, como convém a alguns círculos. Canetti, um verdadeiro monstro da literatura mundial, que nunca precisou de hype nenhum, insuperável enquanto memorialista, continua um tanto subestimado em razão de ser pouco lido, o que ajuda a entender o seu ressentimento e rancor no fim da vida.

Em “A Consciência das Palavras” também existe inclusive um ensaio sobre o arquiteto nazista Albert Speer, extremamente interessante.

Apesar de todo o background literário de fôlego, Elias Canetti se mostrou realmente um mestre da literatura, sua inequívoca expertise, principalmente nos livros de memória, verdadeiras obras-primas.

Canetti é provavelmente o maior memorialista da literatura mundial, absolutamente imbatível. Por mais que eu goste do brasileiro Pedro Nava, excelente, Canetti tem um estilo mais original. Ele escreve como se dialogasse com a nossa consciência.

Falo do escritor Elias Canetti porque aprendi muito com ele, não só com o seu olhar peculiar e único sobre muitas coisas, sempre com um tom desconcertantemente profundo e erudito, mas também aprendi sobre o quanto ele era humano, até nos defeitos que mostrou ter no fim da vida.

Em suas memórias, onde era genial, Canetti escrevia como se a voz dele se projetasse na nossa consciência, inclusive com os seus defeitos, os quais não escondia mas que se mostraram ser graves no fim da vida, denotativos de defeitos de caráter.

Foi para mim extremamente decepcionante, apesar de compreensível, tomar conhecimento dos defeitos de caráter de Canetti ao ler as resenhas sobre a obra póstuma do quarto volume de memórias, até hoje inédito no Brasil, não tendo a Ed. Schwartz (Cia das Letras) o publicado.

Eu li os três primeiros livros das memórias de Canetti ainda nos anos 90, publicados no Brasil pela Cia das Letras. Esses livros com certeza estão fora de catálogo. Não ter publicado no Brasil até hoje o quarto e último volume das memórias já indicava que algo estranho aconteceu.

O primeiro volume de memórias de Elias Canetti se chama “A Língua Absolvida”, lançado originalmente no fim dos anos 70. O segundo se chama “Uma Luz em Meu Ouvido”, lançado na primeira metade dos anos 80, e o terceiro se chama “O Jogo dos Olhos”, lançado na segunda metade dos 80.

Eu vou dizer porque tenho que dizer, não ligo para quem achar que é arrogante, pelo menos aproveite a minha dica, corra atrás e vá ler: se vc não conhece esses livros, vc não conhece a melhor literatura de memórias, a mais sofisticada, do século XX.

Canetti narra encontros com James Joyce, Bertolt Brecht, Robert Musil, Isaac Babel etc. O próprio Canetti é um peso pesado da literatura do século XX, mesmo que os ingleses tenham ficado muito ressentidos, com razão, quando o quarto livro de memórias dele foi lançado postumamente.

O quarto volume das memórias de Canetti abordava a vida na Inglaterra, país que Canetti viveu durante décadas, após antecipar o genocídio do Holocausto depois que a Alemanha anexou à Áustria, e não poupou críticas, do começo ao fim, o que soou inegavelmente como ressentimento.

Rubem Fonseca, o maior escritor brasileiro pós-moderno, bebeu na fonte de Canetti ao escrever a obra-prima de 1988, “Vastas Emoções e Pensamentos Imperfeitos”, especialmente citando as impressões que Canetti teve de Babel na Berlim no fim dos anos 20 do século XX, profundamente elogiosas.

Para o jovem Canetti, Babel era o mais brilhante intelectual, escritor, o mais inteligente e sensível artista que ele conheceu naquela época, mais até do que Brecht, com quem ele vivia se desentendendo nas mesas de bares e restaurantes da Berlim no fim dos anos 20.

Na Berlim do fim dos anos 20 do século XX, Brecht era o mais paparicado entre os intelectuais alemães, tendo lançado a sua obra-prima do teatro, “A Ópera dos Três Vinténs”, a qual Canetti, então jovem tradutor da icônica editora Malik de romances americanos para a língua alemã, seguindo a moda da época da cultura alemã de imitar em quase tudo os EUA, assistiu à estreia da peça de Brecht nos teatros de Berlim.

Canetti conheceu Brecht nessa época, assim como conheceu Babel, cuja fama como escritor já havia chegado à Europa Ocidental.

Apesar de Canetti antipatizar com a figura de Brecht na época, ele o reconhece como um artista e escritor brilhante, contra o qual ninguém poderia polemizar. Brecht tinha resposta para tudo.

De acordo com Canetti, Brecht parecia mais velho do que era. E escrevia os melhores poemas que ele pôde ler na literatura alemã da época.

O quarto livro das memórias de Canetti, publicado postumamente, é chamado “Party in the Blitz”, referência às festas que a sociedade inglesa fazia mesmo quando era bombardeada impiedosamente pelos alemães durante a II Guerra Mundial, como se isso não os afetasse.

“Party in The Blitz” é extremamente polêmico e foi muito criticado pela crítica literária inglesa, uma das melhores do mundo. A provocação à sociedade inglesa já começava no título do quarto volume das memórias e indicava o que estava por vir.

De fato, Canetti, em “Party in The Blitz”, escrito no fim da vida, depois de viver décadas na Inglaterra, destilou todo o seu rancor e amargo por nunca ter tido o reconhecimento que ele achava que merecia.

A crítica inglesa foi cruel na análise do livro, não só porque Canetti criticou grosseiramente a Inglaterra, mas porque, em inúmeras passagens, teceu comentários extremamente negativos e sem ética, transparecendo certa inveja, sobre medalhões da literatura inglesa.

Canetti atacou T. S. Eliot, aluno do grande crítico literário e poeta americano, Ezra Pound, Eliot que muitos consideram o maior poeta do século XX, sobre quem Canetti foi muito agressivo no livro, assim como atacou, de forma mais do que lamentável, a popular e famosa escritora irlandesa Iris Murdoch, de quem ele foi inclusive amante, o que causou perplexidade geral, uma vez que ele, todo o tempo do seu quarto volume de memórias, não tece um elogio sequer a ela mas apenas ataques impiedosos, a exemplo de afirmar que ela seria incapaz de uma única ideia original e coisas do tipo.

O caso extraconjugal de Canetti com Iris Murdoch era do conhecimento de sua esposa, Veza Canetti, também escritora e também judia sefardim de cultura alemã que vivia em Viena, quando conheceu o então jovem Elias Canetti, tendo com ele se mudado para Londres, fugindo do Nazismo.

Veza Canetti parecia tolerar muito bem e até mesmo aceitar os casos extraconjugais de Elias Canetti, que não eram poucos.

Clive James, o famoso crítico literário australiano radicado na Inglaterra, falecido em 2019, tinha não só razão mas motivos pessoais para detonar “Party in The Blitz”, o que fez em artigo no The New York Times na época do lançamento póstumo do quarto livro de memórias de Canetti, no mercado americano e inglês, o que aconteceu em 2005, depois de uma certa resistência do mercado editorial anglo-saxão em publicá-lo, já que havia sido lançado no original em alemão quase dez anos antes, logo após a morte de Canetti, ocorrida em 1994, aos 89 anos.

James escreveu uma biografia da escritora irlandesa Iris Murdoch, o que talvez tenha gerado aqui um pouco de desavença pessoal, mas ele soube escrever com racionalidade, tanto sobre o livro “Party in The Blitz” quanto sobre Canetti, o que, neste último caso, fez inclusive com muita elegância intelectual e a mais fina ironia, sem poupá-lo do extremo rigor com que Canetti costumava se debruçar, em suas memórias, sobre as outras pessoas.

O título da resenha de Clive James, que foi publicada no The New York Times, já dizia a que vinha: ” “Party in the Blitz” The International Man of Mystery”, onde ele descreve um perfil arrasador de Canetti como pessoa e como intelectual.

Segue o link para a resenha mordaz, ácida e não menos irônica de Clive James sobre “Party in The Blitz” (em alemão, o título original é “Nachträge aus Hampstead“, que poderia se traduzir em português como “Apêndices de Hampstead”, famoso bairro londrino):

https://www.nytimes.com/2005/10/02/books/review/party-in-the-blitz-international-man-of-mystery.html

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A ratio Anselmo e os argumentos de Leibniz sobre a existência de Deus

Uma parte muito interessante da filosofia é a que trata da obra de pensadores que, lançando mão da lógica formal, construíram argumentos que têm a finalidade de comprovar ou demonstrar a existência de Deus.

É comum e até mesmo esperado que todos esses argumentos sofram críticas que demonstram falhas na construção do encadeamento lógico ou demonstrem que eles não permitem concluir pela validade da demonstração.

Um aspecto que sempre é discutido sobre o assunto é se a lógica puramente formal pode ser uma ferramenta válida e eficaz para demonstrar a existência de Deus, uma vez que se trata de estabelecer relações entre premissas e conclusões, tratando de meras ideias que trabalham com conceitos abstratos sem qualquer vínculo necessário com a realidade concreta.

Em outras palavras, é possível perfeitamente afirmar que não é porque se consegue construir um argumento válido do ponto da vista da lógica formal que ele necessariamente reflete o que existe na realidade. Os defensores da lógica formal podem se defender dessa objeção dizendo que ela é a única ferramenta capaz de permitir uma análise da possibilidade da existência de Deus.

Pessoalmente, eu não acredito que Deus exista, o que é suficiente para me classificar como ateu, e faço isso porque, basicamente, considero a ideia da existência de Deus sem sentido, ilógica, logo, eu não vejo problemas na utilização da lógica formal, como muitos filósofos e matemáticos fizeram ao longo da história das ideias, para, ao contrário, tentar demonstrar a existência de Deus.

O argumento ontológico de Santo Anselmo para provar a existência de Deus é muito conhecido entre os filósofos.

O filósofo alemão Immanuel Kant foi quem o classificou como “ontológico” porque derivava a priori do conceito de Deus criado por Santo Anselmo, sem lançar mão da experiência ou de fatos existentes na realidade, isto é, a posteriori, para definir o próprio saber.

Em outras palavras, o próprio conceito de Deus de Santo Anselmo provaria a existência de Deus. E o que diz o conceito de Deus de Santo Anselmo, conhecida entre os escolásticos como ratio Anselmo ou a razão de Anselmo?

O argumento é simples: como a ideia ou a concepção intelectual de Deus é que Ele é o Ser mais perfeito que existe, “o Ser acima do qual não se é possível pensar nada maior”, ele necessariamente deve existir não apenas em pensamento mas também na realidade, pois, se existisse apenas em pensamento e não na realidade, não seria “o Ser acima do qual não se é possível pensar nada maior” nem o Ser mais perfeito que existe.

Em suma, uma vez que existência é mais perfeita do que não existência, a própria ideia de Deus implica que Ele existe.

O argumento é inegavelmente brilhante mas existe um grave problema que coloca a conclusão em suspensão, que é a premissa de Deus enquanto o Ser mais perfeito que existe, que não é algo exatamente compreensível em sua essência, dada a abstração da afirmação.

Essa premissa apenas tornaria o argumento não refutável, o que não significa que seja verdadeira sua conclusão, como explicou o filósofo inglês Colin McGinn numa entrevista a Jonathan Miller no programa da BBC chamado “As Fitas do Ateísmo”. Miller infelizmente faleceu em novembro de 2019, aos 85 anos.

O filósofo e matemático alemão Gottfried Wilhelm Leibniz, criador, junto com Isaac Newton, cada um trabalhando sozinho, do cálculo diferencial e integral, ramo da matemática dos mais importantes, defendeu o argumento ontológico de Santo Anselmo e criou regras lógicas que visavam demonstrar que a ideia de Deus é possível e que era real.

Leibniz formulou o argumento ontológico de maneiras distintas mas que sempre giravam em torno de uma ideia central.

O primeiro argumento é bem simples:

I – Deus é por definição um ser absolutamente perfeito.

II – Existência é uma perfeição.

III – Portanto, Deus existe.

O segundo argumento amplia o primeiro ao acrescentar a ideia de existência necessária:

I – Deus é por definição um ser absolutamente perfeito.

II – Existência necessária é uma perfeição.

III – Portanto, Deus necessariamente existe.

O terceiro argumento de Leibniz fala em “Ser necessário”, sem mencionar a perfeição ou Deus:

I – Um ser necessário é por definição um ser que necessariamente existe.

II – Um ser que necessariamente existe, existe.

III – Logo, um ser necessário existe.

Uma ideia central nos argumentos de Leibniz é a possibilidade de Deus.

Na ausência de provas em sentido contrário, deveria se assumir que Deus existe. A ideia é exposta na argumentação abaixo:

I – Se é possível que Deus exista, então ele existe.

II – Na ausência de provas contrárias é mais razoável supor que uma sentença da forma “é possível que…” seja verdadeira ao invés de falsa.

III – Não há prova que “é possível que deus exista” seja falsa.

IV – Portanto, é mais razoável supor a sentença “é possível que deus exista” seja verdadeira ao invés de falsa.

V – Logo, é mais razoável supor que Deus exista do que Deus não exista.

Para Leibniz, Deus é um ser necessário ou um ser cuja não existência é impossível.

Ele desenvolveu um argumento modal da prova da possibilidade de Deus baseado na premissa de que “Se um ser necessário não é possível, nenhum ser é possível”.

O argumento modal da prova da possibilidade de Deus, a partir da qual ele pretende provar a existência de Deus, é o seguinte, como apresentado por Nicholas Jolley em “The Cambridge Companion to Leibniz” (Cambridge University, 1995. Páginas 363):

I – Se um ser necessário não é possível, nenhum ser é possível.

II – Se a definição de um conceito é não contraditório, então um ser que exemplifique esse conceito é possível.

III – Mas existem exemplos de definições de conceitos que são não contraditórias. (um círculo é definido como uma figura plana tendo todos os seus pontos equidistantes do centro e nós sabemos a priori que essa definição é não contraditória).

IV – Assim, um ser que exemplifica o conceito de circulo é possível.

V – Portanto, algum ser é possível.

VI – Logo, um ser necessário é possível.

A partir do que ele considera uma prova da possibilidade de um “Ser perfeito” ou “Ser necessário”, ele conclui que Deus necessariamente existe:

“Assim, somente Deus (ou o Ser necessário) possui este privilégio: que se é possível tem de existir necessariamente. E como nada pode impedir a possibilidade do que não contém nenhum limite, nenhuma negação, e, consequentemente, nenhuma contradição, isto basta para conhecer a existência de Deus a priori.” (LEIBNIZ, Princípios de filosofia ou Monadologia. Tradução, introdução e notas de Luís Martins. Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 1987. Páginas 52 e 53).

Este post foi baseado nas informações contidas no artigo intitulado “A INTERPRETAÇÃO DO ARGUMENTO ONTOLÓGICO SEGUNDO LEIBNIZ”, de autoria de Andréa Maria Cordeiro, que na época era mestranda de filosofia da PUC/RS.

O filósofo inglês Colin McGinn faz uma crítica, que eu considero procedente, ao argumento ontológico na entrevista que concedeu a Jonathan Miller no programa da BBC chamado “As Fitas do Ateísmo”.

Segue o link da parte 1 da entrevista:

Parte 2, onde se concentra o cerne da crítica ao argumento ontológico de Santo Anselmo:

Tem que ver a entrevista toda senão não vai entender o ponto inicial da parte 2.

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A abordagem impessoal judaica acerca do antissemitismo

Tendo em mente a reedição da polêmica sobre as obras de Monteiro Lobato, algo que se arrasta no Brasil há cerca de 20 anos sem uma definição, época em que começaram a brotar as críticas sobre trechos racistas de suas obras, tenho que dizer que quem melhor refletiu, escreveu e produziu obras sobre a opressão, o ódio, a intolerância, o preconceito e a discriminação, com maturidade intelectual, foram os autores judeus, principalmente quando falavam de antissemitismo, ou seja, sobre uma realidade que os tocava de perto enquanto vítimas.

Essa é uma daquelas verdades indiscutíveis, imemoriais, pelo menos para quem tem um pouco de cultura e pôde perceber, nas obras artísticas de autores judeus, como eles sempre lidaram com isso enquanto, antes de tudo, meramente seres humanos, daí um certo distanciamento do autor judeu com a judeidade, quase alguém falando de si mesmo em terceira pessoa.

Os judeus foram perseguidos durante séculos. Desde o nascedouro do Cristianismo, que surgiu concomitantemente às raízes do que, séculos depois, viria a ser conhecido como antissemitismo (ódio contra os judeus, no sentido semântico específico mais aceito), quando surgiu a acusação de serem deicidas, palavra que significa “assassinos ou matadores de Deus”, por causa do julgamento de Jesus Cristo que precedeu a crucificação, a partir do qual os judeus passaram a ser acusados como responsáveis pela morte do Messias.

Aqui cabe um adendo. O julgamento de Jesus Cristo, pela leis então vigentes entre os descendentes das 12 tribos, é absolutamente nulo porque foi finalizado após o pôr do Sol da sexta-feira e isso era proibido entre os judeus, que consideram o sábado, iniciado após o pôr do Sol de sexta-feira e indo até o pôr do Sol do sábado, um dia sagrado, o que mostra que Jesus foi provavelmente um dos maiores injustiçados de todos os tempos em termos de devido processo legal.

A acusação de deicidas, que historicamente pesou contra os judeus, é o berço do antissemitismo moderno como conceito típico do século XIX, uma época da história humana pródiga em conceitos nas mais diversas áreas, como comunismo, racismo, colonialismo, imperialismo (uma qualificação política do colonialismo) etc.

O fato é que é impressionante como os autores judeus falam de tudo relacionado a isso com extrema dignidade e sem desespero, pelo menos aqueles que não querem capitalizar politicamente em cima do antissemitismo, famosa carta albergada pelos sionistas europeus sobreviventes do Holocausto que fundaram Israel.

Para se ter uma ideia do que eu estou falando, se você ler um autor judeu como Primo Levi, judeu italiano que esteve em Auschwitz e sobreviveu, verá como o seu relato é puramente humano, quase asséptico na perceptível ausência de uma indignação moral que se esperaria de uma vítima inserida num grupo específico, alvo primordial dos nazistas em sua “Solução Final”. Raul Hilberg, provavelmente o maior historiador sobre o Holocausto como fato histórico, ele próprio um judeu sobrevivente do genocídio, também escreveu sobre o assunto dessa forma objetiva.

Primo Levi não escreveu os seus relatos autobiográficos sobre o Holocausto como uma vítima judia lamentando toda aquela maldade, desumanidade, brutalidade. Não que ele diminua tudo isso, ao contrário, ele descreve muito de perto os horrores do Holocausto.

O que chama atenção nos relatos de Primo Levi é como ele trata tudo aquilo como uma grande maldade, uma grande perversão praticada contra o ser humano, não especificamente contra os judeus.

Nas obras de Levi, os judeus são, antes de qualquer coisa, seres humanos vítimas do que de mais repulsivo se pôde conceber, que é o extermínio implementado em escala industrial, o que acontecia nas câmara de gás dos campos de concentração, que funcionavam ao som das maiores obras-primas da música clássica alemã (isso mesmo que vc entendeu: os judeus iam para as câmaras de gás escutando música clássica alemã).

Essa característica da obra de Primo Levi existe também, de modo específico ou adaptável às circunstâncias, em vários outros autores judeus, como Marcel Proust, o célebre escritor francês.

Proust, que provavelmente criou o eufemismo “descendente de judeu” para não usar simplesmente “judeu”, ele próprio judeu ou descendente de família judaica, narra, nos romances de “Em Busca do Tempo Perdido” (7 livros, publicados ao longo de 15 anos), a estranheza que ser judeu causava nas altas rodas parisienses dos fins do século XIX e início do século XX, França que talvez seja um dos países mais antissemitas da história, talvez apenas abaixo dos nazistas alemães.

Para os franceses da elite sofisticada de Paris, cidade ícone da cultura ocidental, os judeus eram meros descendentes de tribos formadas por pastores bronzeados pelo Sol dos desertos do Oriente Médio, o que, colocando de lado o racismo explícito da ideia, nos faz lembrar que os judeus nunca foram um povo ocidental. Os judeus sempre foram orientais, do Oriente Médio. povo de origem semita, nada a ver com a Europa.

Na Europa, rompendo com suas origens tribais, os judeus puderam ser assimilados pelo Ocidente, aprendendo línguas que comunicavam muito mais ideias do que o diminuto léxico de suas línguas originais (o ladino ou judeu-espanhol, por exemplo, falado pelos judeus sefarditas da Espanha, não tinha mais do que cinco mil palavras), costumes, valores, filosofia e ciências, ideias que dificilmente brotariam numa cultura rabínica, supersticiosa e isolada em guetos, como durante séculos eles foram confinados a viver em países europeus importantes, inclusive na Espanha, onde viviam ondas de idas e vindas de tolerância, assimilação e perseguição, e onde, no apogeu, constituíram a maior comunidade judaica que se tem notícia, na essência, até hoje (“Sepharad“, a palavra com que os judeus ibéricos se referiam à Espanha, no hebraico adaptado do aramaico antigo, significa “terra prometida”, como nos lembra o escritor argentino Jorge Luis Borges).

Outro escritor judeu, Elias Canetti, Nobel de Literatura de 1981, escritor judeu sefardim ou sefardita de língua alemã, cuja família de ricos comerciantes judeus, tanto por parte de pai (família Canetti) como por parte de mãe (família Arditti), havia se radicado originalmente nos Balcãs, mais precisamente na Bulgária, na cidade de Rutshuk, às margens do Rio Danúbio, também exibiu essa característica de abordar a judeidade como algo alheio ao cenário, a mesma sensação que se tem de alguém falando de si mesmo em terceira pessoa, com a peculiaridade de fazer isso sem o menor sinal emotivo de identificação. Para escritores judeus como Canetti, o judeu é apenas o outro, como qualquer outro ser humano.

Eu considero isso muito avançado, afinal, somos todos seres humanos.

Lembro-me do trecho do segundo volume das elogiadíssimas memórias de Canetti, o clássico “Uma Luz em Meu Ouvido”, que narram quando ele cursava a graduação em Química em Viena e tinha uma amiga, também judia, filha de família de riquíssimos banqueiros de Kiev, Ucrânia (a Ucrânia é repleta de comunidades judaicas; Trotski, por exemplo, é judeu ucraniano, assim como o grande escritor Isaac Babel), com quem conversava sobre os mais variados assuntos, não só sobre as atividades acadêmicas, mas também sobre arte e cultura em geral e, principalmente, a obsessão de ambos, sobre três judeus da Galícia polonesa que cursavam com que ele Química.

Os judeus poloneses lembrados por Canetti, seus companheiros de classe em química experimental, tinham nomes muito conhecidos no braço ashkenazi ou asquenazi em português (o outro braço judaico, de origem centro-europeu e hoje majoritário entre os judeus de todo o mundo): Alter Horowitz, Josias Kohlberg e um estudante que simplesmente Canetti disse que jamais soube o seu prenome, apenas o sobrenome, Backenroth.

Esse capítulo das memórias de Canetti é extremamente poético. Gira em torno da admiração que ele e sua amiga, de nome Eva Reichmann, ambos de famílias judias muito ricas, apesar da família dela ter perdido parte da riqueza após a revolução russa, tinham pelos judeus poloneses, evidentemente não tão ricos quanto eles, Canetti e a amiga judia ucraniana.

Bem, todos eles eram judeus numa cidade que, apesar de muito cosmopolita, que era e sempre foi Viena, tinha uma tradição elitista histórica. Inevitável que sofressem preconceito e isolamento.

O que chamou a atenção de Canetti e de sua amiga Reichmann nos 3 judeus da Galícia polonesa era o quanto eles eram próximos e, acima de tudo, o quanto Horowitz e Kohlberg tratavam Backenroth com reverência, falando com ele de forma diferente com que falavam entre si.

Canetti, em suas memórias, disse que era como se eles o respeitassem em demasia, não por algo extraordinário que ele teria como qualidade pessoal, mas sim porque ele parecia mais inocente e precisava ser protegido. Kohlberg e Horowitz sabiam lidar com as ofensas antissemitas, que se iniciavam desde a hora da chamada, quando os seus nomes pronunciados causavam risos na turma, e se preocupavam em proteger Backenroth disso.

Canetti disse que a maior curiosidade de todos era ouvir a voz de Backenroth, que viva em silêncio, o que era um claro sinal de que não sabia falar o dialeto alemão vienense.

Canetti escreveu que todos na sua turma, inclusive os professores, o tratavam dessa forma, mesmo sem o conhecê-lo, porque ele tinha um semblante tão bonito e puro, que lembrava a de um santo pintado pelos maiores mestres da pintura. Canetti dizia que ele lembrava o Jesus como retratado classicamente.

Nem os estudantes austríacos mais antissemitas tinham coragem de destratá-lo. Quando ele surgia no recinto, todos silenciavam e o respeitavam, ora acenando com a cabeça, ora rindo timidamente em sinal de simpatia. Ou seja, ele tinha uma presença realmente imponente.

Canetti disse que não conseguia entrar na sala de aula sem se certificar antes de que Backenroth estava lá, ele que, até o momento de conhecê-lo, sempre tendeu a ridicularizar conceitos como sublimidade ou brilho pessoal diferenciado.

O relato é impressionante.

Canetti escreveu que, ao vê-lo de avental branco nas aulas de química experimental, manuseando os instrumentos químicos, aquela imagem não o convencia, como se esperasse pelo dia em que ele largaria tudo e revelaria sua verdadeira imagem.

A única pessoa com quem ele se permitia conversar sobre Backenroth era a sua amiga, Eva Rechmann, a judia de Kiev. Ela dizia: “Você fala como se ele fosse doente. Mas ele não é doente. Apenas é belo. Por que será que você fica tão impressionado com a beleza masculina?”.

O jovem Canetti respondia: “Masculina? Masculina? Ele tem a beleza de um santo. Não sei o que ele procura aqui. O que tem um santo a procurar num laboratório de química? Ele sumirá de repente.”

Os dois conversavam sobre os mais variados assuntos, literatura, química, tarefas acadêmicas, música etc. Mas nunca abandonavam Backenroth, por quem eles tinham especial admiração, mesmo sem nunca falar com ele.

Canetti descreveu Reichmann como uma mulher grande e de beleza exuberante. Reichmann se recusou com obstinação à ideia de que ela deveria falar com Backenroth. Canetti tentava convencê-la dizendo que, ela, por saber falar russo, saberia falar entender polonês.

A ideia de todos serem judeus, apesar de subjacente, não existia propriamente para eles. Reichmman negava o contato com Backenroth sugerido por Canetti dizendo que seria um ultraje para ele, polonês, que ela se dirigisse a ele em russo. Explicava que os poloneses tinham grande orgulho da sua língua materna e que ela não passaria esse vexame, afinal, ela tinha Backenroth em tão alta conta quanto Canetti.

Reichmann achava que, pela forma como Backenroth era tratado por Horowitz e Kohlberg, seus únicos amigos próximos, ele talvez fosse apenas um “robbe chassídico”, um título respeitoso usado para o líder de um grupo judeu kassidim, siginificando também um professor numa escola judaica, mas apenas ainda não sabia disso.

Canetti, na maturidade, relembra que essas conversas com Reichmann eram apenas uma indefinição sentimental do que ambos sentiam um pelo outro, sendo Backenroth o que os atraía a ficarem juntos, cada vez mais. O receio que ambos sentiam sobre a hipótese dele sumir de repente nada mais era do que um reflexo do que poderia os separar de vez.

Numa certa manhã, Canetti chegou à sala de aula e, para a sua aflição, Backenroth não estava em seu lugar de costume. Ele pensou que ele estivesse atrasado mas temeu que estivesse errado. Nesse momento, ele percebeu que sua amiga, Eva Reichmann, estava muito mais apreensiva e inquieta do que ele, evitando olhá-lo.

De repente, Reichmann falou: “os três não vieram. deve ter acontecido alguma coisa”. Os lugares de Kohlberg e Horowitz também estavam vazios, o que havia passado despercebido por Canetti.

Ao contrário de Canetti, Reichmann não o via tão isolado. Ela achava que eles três sempre andavam juntos, então, se os três não estavam, não haveria de ser nada demais.

Isso a tranquilizava, apesar da evidente apreensão em seu semblante. Ela nunca quis admitir o isolamento de Backenroth que Canetti sempre temeu em suas conversas com ela. Canetti, para amenizar a apreensão de Reichman, soltou: “eles devem estar em alguma cerimônia religiosa.”

Nesse momento, Canetti passou de pessimista para otimista, como se se recusasse a acreditar que algo de ruim houvesse acontecido. Os papeis se inverteram. Reichmann passou a ficar pessimista: “Algo aconteceu com ele e os outros dois estão com ele.”

Canetti perguntou: “Será que ele está doente?” e completou, percebendo a falta de sentido do que havia dito: “mas isso não seria motivo para a ausência dos outros dois.”

Reichmann balbuciou: “Está bem. Se ele estiver doente, um dos dois cuidará dele e o outro virá ao laboratório.”

Canetti retrucou: “Não. Aqueles dois não se separam nunca. Vc já viu um deles fazer alguma coisa sem o outro?”, complementando: “deve ser por isso que eles moram juntos”, para a perplexidade de Reichmann, que falou: “Quanta coisa você descobriu! Você é investigador?”

Canetti explicou: “Uma vez eu os segui e vi que Kohlberg e Horowitz moram juntos e Backenroth mora três casas adiante. Os dois se despediram dele cerimoniosamente e depois voltaram para casa, como se não o conhecesse.”. Reichmann curiosa: “Por que vc fez isso?”

Canetti respondeu: “Eu queria saber se ele morava só. Talvez, pensei, ele finalmente ficasse só, então de repente eu estaria ao seu lado, como que por acaso, e o saudaria. Eu fingiria surpresa, ele realmente ficaria surpreendido, e assim certamente começaríamos a conversar.”

Eis que Reichmann perguntou: “Mas em que língua?”.

Canetti “Isso não é difícil. Posso entender-me com pessoas que não conhecem uma palavra em alemão. Eu aprendi isso com meu avô.”

Reichmann contestou: “Vc fala com as mãos. Isso não é bonito. Não é do seu feitio.”

Canetti ponderou: “Em outras ocasiões eu não o faço. Mas assim teríamos quebrado o gelo. Você sabe há quanto tempo eu desejo conversar com ele!”.

Reichmann, com ar de superior, disse: “Talvez eu devesse tê-lo tentado em russo. Eu não sabia que vc fazia tanta questão.”

E assim eles continuaram a falar sobre Backenroth mesmo quando ele estava ausente pela primeira vez. Passou-se o tempo, eles mudaram de assunto, mas não adiantava fingir um para o outro. Ambos estavam apreensivos em saber o que aconteceu para ele não estar lá, no seu lugar de sempre.

Apesar de Canetti ter tentado desviar a atenção falando sobre um livro de literartura russa que havia começado a ler, Reichmann não se aguentou: “Estou me sentindo mal, de tanto medo.”

Neste momento surgiu na sala o professor Frei, o único que pronunciava os nomes dos judeus da Galícia polonesa com respeito, seguido do seu habitual séquito, só que, dessa vez, aumentado, quatro ao invés de duas pessoas.

Fez um sinal imperioso para que os alunos se aproximassem. Esperou um pouco até que todos estivessem perto e disse: “Aconteceu um caso triste. Tenho de lhes dizer. O Sr. Backenroth envenenou-se esta noite com cianureto.”

Frei ficou parado alguns instante, sacudiu a cabeça e disse: “Parece que ele era muito solitário. Nenhum dos senhores o percebeu?”

Ninguém respondeu. A notícia era horrível demais e todos se sentiam culpados, ainda que ninguém algum dia o houvesse feito coisa alguma. Esse era, no fundo, o problema: ninguém tentara fazer alguma coisa.

Tão logo o professor Frei deixou a sala, Eva Reichmann chorou soluçando de forma tão forte que parecia haver perdido um irmão. Ela não tinha um irmão mas agora havia perido o irmão mais querido que alguém podia ter.

Canetti percebeu, neste momento, que algo havia acontecido entre eles, apesar de, em comparação com a morte do jovem Backenroth, aos 21 anos, isso pouco significava. Ela sabia, tanto quanto Reichmann, que em suas conversas sobre Backenroth, ambos haviam abusado da sua solidão.

Mês após mês ele estivera entre ele e ela. A beleza dele os estimulara. Ele foi o segredo de ambos, que guardavam entre si, mas também dele, que não sabia o quanto ele era importante para Canetti e Reichmann.

Eles nunca falaram com Backenroth, dando inclusive inúmeras evasivas para que justificassem esse silêncio. A amizade entre Canetti e Reichmann se destroçou no sentimento de culpa de ambos. Ele nunca se perdoou, tampouco ela.

Canetti, ao falar na maturidade sobre essa passagem de sua vida, lembra que “quando hoje, a lembrança me traz o som da frase de Fräulein Reichmann, cujo tom estranho me enfeitiçara, sou tomado pelo rancor, e sei que perdi a única oportunidade de salvar Herr Backenroth: em vez de brincar com ela, eu deveria tê-la persuadido a amá-lo.”

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A importância da contribuição russa na história das ideias

A intelectualidade russa sempre causou verdadeira inveja nos europeus ocidentais, que ficavam embasbacados sobre o quanto ela era sofisticada para um país que, no grosso do modo de ser social e político, facilmente poderia ser considerado “atrasado” para padrões ocidentais.

A questão é que a aristocracia russa era de primeiríssima categoria quando o assunto era a busca pelo conhecimento (ciência e filosofia) e a apreciação de padrões estéticos (arte).

Isso se explicava, em grande parte, porque a Rússia sempre foi um dos países mais ricos do mundo. Ser rico num país muito rico era uma vantagem dos russos que os europeus ocidentais nunca engoliram com naturalidade.

Edmund Wilson, um intelectual da mais alta elite americana, autor do clássico ensaio sobre a história do socialismo europeu, cujo título em inglês é “To The Finland Station” (no Brasil, “Rumo à Estação Finlândia”) percebeu isso de plano.

Os russos educados não só entendiam tudo o que a elite intelectual ocidental europeia falava mas iam além. Como tinham senso crítico e capacidade intelectual inovadora, criavam os seus próprios conceitos e ideias, como, por exemplo, a ideia de intelligentsia, que é a do intelectual/artista engajado politicamente, que visa modificar a realidade social na qual estava inserido.

Perceba que a ideia russa de intelligentsia não é uma ideia que meramente se confunde com a de “intelectual”, como explica em seus ensaios o filósofo judeu de origem letão, radicado na Inglaterra desde pequeno, Isaiah Berlin, um dos maiores historiadores das ideias, especializado em histórias das ideias russas. Era um plus que exigia o engajamento e a a capacidade de modificar a realidade política e social circundante.

Na Rússia, a partir de um certo momento do século XIX, nenhum intelectual/artista era respeitado se não tivesse esse impacto ou engajamento político-social transformador.

Essa autonomia e originalidade intelectual russa sempre foram observadas nas mais variadas áreas do conhecimento, inclusive naquelas áreas em que os europeus ocidentais se julgavam dominantes, como na área das ciências naturais ou exatas. Os russos se destacaram na matemática, física, medicina, química etc, tanto quanto os europeus ocidentais e, muitas vezes, até mais.

Por exemplo, o matemático autor do que durante muitos anos foi a base da matemática, que era a teoria dos conjuntos (depois chamada de teoria ingênua dos conjuntos, após o advento do Paradoxo de Russell), era um matemático russo chamado Georg Cantor.

Mesmo com a necessidade de adaptação em relação aos seus axiomas fundamentais, a matemática moderna não existiria sem a teoria dos conjuntos de Cantor, um dos maiores gênios da humanidade. Cantor morreu louco num hospício, o que nunca teve nada a ver com os paradoxos que afetaram a sua maior obra intelectual. Seus problemas psiquiátricos eram inerentes à pessoa que ele era.

Do ponto de vista lógico, a teoria dos conjuntos lançada por Cantor é uma obra-prima do intelecto humano, o que não é afastado pelo paradoxo encontrado pelo genial Russell aos 28 anos de idade. Apenas se aprimorou o que Cantor concebeu.

Eu tive um professor de matemática que costumava dizer que quem não era bom em teoria dos conjuntos tinha déficit intelectual. Simplesmente porque toda a linguagem lógica mais básica que a matemática pode gerar, e lógica e matemática são coisas diferentes, pode ser descrita pela teoria dos conjuntos.

Bertrand Russell tinha tanta noção disso que a sua maior obsessão enquanto matemático, após descobrir o seu famoso paradoxo (o conjunto que contem todos os conjuntos que não contém a si mesmo, o que resultava num paradoxo sobre a existência do conjunto R – de Russell, pois ele existia e ao mesmo tempo não existia, uma vez fixadas as suas premissas) foi a de descrever a matemática numa linguagem puramente lógica.

Aparentemente, Russell abandonou a matemática e passou a se dedicar à filosofia quando viu que Kurt Gödel provou, matematicamente, que a meta que ele perseguia era matematicamente impossível de ser atingida, o que fez com os seus famosos teoremas da incompletude.

Ou um sistema matemático de axiomas é consistente ou é completo. As duas coisas juntas são simplesmente impossíveis de existir.

Isso significa dizer que um sistema de axiomas matemáticos fechado que seja consistente pode responder todas as perguntas que ele propõe, mas não todas as questões possíveis ou suscitáveis (isto é, fora dos axiomas mas possíveis de serem suscitados, o que denota a sua incompletude), como a teoria dos conjuntos moderna de Zermelo-Fraenkel.

Por outro lado, um sistema matemático de axiomas aberto que se propõe a responder todas as questões suscitáveis, como a teoria ingênua dos conjuntos de Cantor, não pode ser consistente com as suas premissas. Ele cai em determinado momento (como aconteceu com a teoria dos conjuntos de Cantor a partir do Paradoxo de Russell).

Perceba que nem mesmo a teoria dos conjuntos de Zermelo-Fraenkel, a que afastou o Paradoxo de Russel, se salva da condenação ocasionada pelo teorema de Kurt Gödel, que simplesmente se aplica a todo e qualquer sistema de axiomas matemáticos, menos os mais triviais. Isso foi provado matematicamente.

A única alternativa a um retorno ao que se conhece na história da matemática, a mais dramática história da ciência que existe, como “paraíso de Cantor”, quando a teoria ingênua dos conjuntos de Cantor era considerada infalível e simplesmente perfeita, é a hipótese de que possam existir sistemas matemáticos de axiomas fechados e consistentes que sejam complementados por outros.

As implicações abstratas que isso gera são de tal magnitude que é como se pudéssemos cindir a realidade em várias dimensões, onde sistemas matemáticos com axiomas próprios possam ser completados por outros sistemas axiomáticos.

Isso é uma tese que existe mas de difícil senão impossível comprovação com as ferramentas matemáticas de que dispomos atualmente.

Seria necessário admitir que existem dimensões lógicas e matemáticas com regras próprias e que, além disso, possam complementar os sistemas axiomáticos que construimos com as ferramentas de que dispomos.

Por enquanto, isso está mais para a ficção científica do que para a realidade científica. Parece que teremos sempre que nos contentar em estar atrás do sentido da realidade em que vivemos, uma coisa dialética sem fim.

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As relações entre Política e Guerra: alguns aspectos positivos e negativos e o caso do Brasil

A última moda linguística, tanto na Internet quanto fora dela, é chamar as pessoas de “guerreiras”. É “guerreiro” para lá e “guerreira” para cá. O termo tem uma conotação aparentemente positiva, significando a pessoa empenhada em lutar pelos seus direitos ou por melhorias na sociedade em geral. O uso da palavra traz ínsita a noção de que a arena política tem muito de uma arena de guerra. A política é a guerra por outros meios, ditos civilizados. Os mesmos conflitos de interesses que levam a uma guerra continuam presentes na política. Isso é uma constatação objetiva que, como em tudo na vida, tem os seus aspectos positivos e negativos.

É positiva a substituição da guerra pela política porque se abre mão das armas e das mortes em massa na hora de resolver conflitos de interesses. Foi mais ou menos o mesmo sentimento que levou à criação do Poder Judiciário para ser o terceiro imparcial que iria resolver os conflitos entre os cidadãos com base na lei, impedindo que as pessoas aderissem à violência para resolver os seus litígios. Toda a história da construção dos Estados e das relações sociais é marcada pelo objetivo de abandonar a violência como meio válido de resolução dos conflitos.

O aspecto negativo é que, por mais que exista um esforço para impedir o clima de guerra entre as partes envolvidas numa determinada disputa, ele nunca é totalmente dissolvido ou afastado. O clima beligerante sempre se fará presente e influenciará comportamentos, atitudes e ações. A questão é que, apesar de ser normal essa animosidade beligerante, pelo menos até certo ponto, o fato é que não se pode violar certas regras éticas e legais, que são o que garantem que a disputa não assuma ares destrutivos, como acontece numa verdadeira guerra, onde o inimigo deve ser eliminado.

O que acontece atualmente no cenário político brasileiro evidencia esse aspecto negativo muito bem. O golpe de estado dado por Michel Temer et caterva e as reformas antipopulares do seu governo golpista são praticamente “atos de guerra”, se considerarmos a reação violenta que lhes é intrínseca a toda uma política mais democrática e voltada ao combate à desigualdade social.

Também é possível detectar esse clima de guerra inerente à Política no uso distorcido do Poder Judiciário como arma estratégica e muito eficiente de ataque aos adversários políticos, como o tipo de ação judicial perpetrada pela Lavajato, onde Lula é a principal vítima.

O termo em inglês para esse tipo de atuação ilegítima do Poder Judiciário é “lawfare”, que basicamente significa o uso distorcido do Direito, entendido como o ordenamento jurídico, e do aparato judicial como verdadeiros instrumentos ou armas que devem ser usados para atacar adversários ou inimigos políticos. Esse uso distorcido do Direito e do aparato judicial sempre estará a serviço de determinados interesses políticos e econômicos.

O lawfare atualmente, no cenário internacional e dentro das disputas que existem, assume características de uma estratégia oficial de guerra, encampada por muitos países, principalmente os EUA, que são pioneiros em usar o aparato jurídico-normativo e judicial para atacar quem venha a ser considerado adversário ou inimigo político.

O lawfare é hoje uma das maiores ameaças ao Estado Democrático de Direito porque ele implica uma nefasta distorção dos objetivos e da própria natureza do Direito e do Poder Judiciário. Noções como imparcialidade do juízo, aplicação correta da lei, investigações sérias, que não forjam provas, tudo isso fica gravemente comprometido.

O pior nesse tipo de situação é que o ataque político ilegítimo, perpetrado por meio dos sistemas oficiais de justiça, praticamente funciona como uma blindagem a todo tipo de injustiça, passando-se por algo aceitável simplesmente porque a ação parte dos órgãos oficiais do Estado, com tudo sendo feito aparentemente dentro do que está previsto em lei.

O golpe de estado no Brasil, que é considerado muito sofisticado por analistas políticos internacionais, está impregnado dessas características. Eles usaram uma possibilidade prevista na lei para forjar uma acusação de crime de responsabilidade e, dessa forma, tomarem o poder por meio de um golpe parlamentar.

É a tentativa de constitucionalizar um golpe de estado, estratégia que, como se viu, é muito eficiente quando se tem poder para implementá-la. No caso do Brasil, foi mais fácil de executar esse tipo de golpe porque, paradoxalmente, a Constituição brasileira tende a abrir espaço para esse tipo de ação ilegítima do parlamento. De certa forma, a Constituição brasileira abriga esse tipo de iniciativa golpista. É como se o golpe fosse uma possibilidade real admitida pela Constituição.

Isso fica claro quando a atuação do Parlamento no processo de impeachment é soberana e não se submete a nenhum tipo de controle popular. O povo é completamente alijado do processo de impeachment. O Poder Judiciário somente exerce um controle superficial das ações do Parlamento, podendo verificar, no máximo, se os ritos e procedimentos foram cumpridos. O Judiciário não está, por exemplo, autorizado a entrar no mérito de uma decisão do Parlamento tomada no processo de impeachment. Por mais que a a decisão do Parlamento esteja desprovida de provas e sem amparo em lei, não há nada que se possa fazer.

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Cenas da ditadura, do estado de exceção instaurado no Brasil

O Brasil já vive uma ditadura e/ou um estado de exceção há muito tempo. E a culpa é de quem defendeu o golpe de estado, dos que votam em Bolsonaro e dos que ficam repetindo “Jesus no controle” ou “Deus no controle”.

Basicamente foi essa a tríade que literalmente acabou com o Estado Democrático de Direito no país e o transformou numa ditadura atrasada, obscura, reacionária, autoritária, onde os abusos se multiplicam no dia a dia. Tudo está dentro do que eu dizia que ia acontecer caso o golpe de estado contra Dilma Rousseff passasse.

Nos últimos dois, três anos, eu já escrevia sobre essa tendência que era muito perceptível no Brasil. Eu sabia que ia acontecer esse movimento reacionário e de perseguição. Depois de todo golpe vem uma ditadura, eu dizia.

Os fatos que atualmente ocupam o noticiário apenas me dão razão. É conservadorismo reacionário contra a liberdade de expressão nas artes, movimento que eu penso que foi inclusive orquestrado, ou seja, combinado para criar a polêmica.

Tenho motivos para acreditar, em tempos de pós-verdade, onde se age ativamente para fabricar motivos e distorcer a realidade, inclusive valendo-se de encenações, e dado o inusitado da situação, que aquela mãe que estava com a filha pequena na apresentação de um artista performático no MAM (Museu de Arte Moderna) em São Paulo participou da orquestração, combinado com o MBL. Suspeito seriamente disso. Seria uma false flag operation (operação sob falsa bandeira), algo encenado para parecer espontâneo, quando tudo foi previamente planejado com a intenção de gerar a reação moralista conservadora que se seguiu.

É juiz de direito perseguido por se manifestar contra o golpe de estado, o que jamais pode ser considerado atividade político-partidária, mas sim mera manifestação de um cidadão que por acaso é juiz.

É cidadão sendo preso e espancado na rua enquanto estava trabalhando.

É a criminalização dos movimentos sociais.

É a criminalização do Partido dos Trabalhadores e de quem é filiado ao PT, bem como de seus simpatizantes e eleitores.

É a implementação de reformas legislativas que retiram direitos que são verdadeiras conquistas para os trabalhadores, a exemplo da reforma trabalhista e previdenciária, jogando o país numa situação de puro retrocesso, chegando ao cúmulo de hoje existir proposta expressa que pretende literalmente acabar, extinguir com a Justiça do Trabalho, conforme apresentado pelo presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia.

É a edição de leis absurdas, que expressamente proíbem palavrãos e nus nas obras de arte (uma lei editada nos últimos dias pela Assembleia Legislativa do Espírito Santo defende expressamente isso, ver aqui: https://g1.globo.com/…/assembleia-aprova-projeto-que-proibe…) e por aí vai.

O atraso, o retrocesso, o autoritarismo, a perseguição contra quem é de esquerda e tem ideias progressistas, enfim, tudo isso são sintomas de uma sociedade doente como está a brasileira.

Esse foi o país que emergiu depois daquelas jornadas de junho de 2013, há mais de quatro anos. O Brasil guinou à direita de uma forma sem precedentes, em curto espaço de tempo, e hoje não vivencia uma democracia. O fascismo está à solta, o autoritarismo, o ódio e a intolerância estão a soltos.

Para se ter uma ideia do cenário autoritário em que atualmente estamos inseridos, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), presidido pela conservadora ministra Carmen Lúcia, ontem (24/10/2017), abriu um procedimento administrativo de natureza disciplinar, chamado Reclamação Disciplinar, contra quatro juízes de direito que tão-somente participaram de ato contra o o impeachment de Dilma Rousseff, mais conhecido como golpe de estado.

Link para a estarrecedora notícia: http://agenciabrasil.ebc.com.br/…/cnj-abre-processo-para-ap…

De acordo com informações do conselho, no ano passado, os magistrados André Luiz Nicolitt, Cristiana de Faria Cordeiro, Rubens Roberto Rebello Casara e Simone Dalila Nacif Lopes discursaram em um carro de som durante a realização de um ato público na Praia de Copacabana, no Rio de Janeiro. A prova utilizada pelo CNJ para justificar a abertura da investigação foi um vídeo gravado durante a manifestação.

Vídeo divulgado no site do CNJ com cenas da sessão onde a Reclamação Disciplinar contra os quatro juízes de direito foi aberta:

Rubens Roberto Rebello Casara é autor de um livro excelente, chamado “Estado Pós-Democrático – Neo-Obscurantismo E Gestão Dos Indesejáveis”, lançado ano passado pela editora Civilização Brasileira e que foi muito elogiado. Nele, ele descreve o perfil do Poder Judiciário dissociado dos princípios democráticos e a forma persecutória por meio da qual o status quo enaltecedor da hegemonia do mercado capitalista preconizado pelos neoliberais anda tratando as vozes discordantes. Quem não se enquadra no perfil desejado é perseguido.

O processo aberto no CNJ contra a sua pessoa apenas evidencia a perseguição e comprova a tese de seu livro.

 

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Sérgio Moro é o juiz em julgamento

O juiz federal Sérgio Moro é uma criação da grande imprensa, a mesma que ajudou a dar um golpe de estado no Brasil. Ele é o produto, a consequência natural de treze anos de ataques aos governos de Lula e Dilma das forças conservadoras brasileiras, que não sabiam mais o que fazer para fingir que são democratas e que estavam apenas exercendo a liberdade de imprensa depois que perderam quatro eleições presidenciais consecutivas vencidas pelo PT.

Depois que os abusos perpetrados em nome da propalada liberdade de imprensa fracassaram fragorosamente quanto à intenção de eleger quem eles queriam para comandar o país e, assim, colocarem em prática todas as políticas fracassadas e que fizeram do Brasil um dos países de maior desigualdade social do planeta, a grande imprensa teve que se voltar para as suas crias, a exemplo de Sérgio Moro, o juiz que “amadureceu” na magistratura na era dos Governos do PT, ouvindo e concordando, em seu viés conservador, com as críticas da grande imprensa.

Sérgio Moro é filho da campanha de ódio que a grande imprensa brasileira implementou contra as mudanças perpetradas pelos Governos Lula e Dilma. Iguais a ele, existem muitos. No caso dele, algo merece especial atenção. Ele saiu da posição confortável de mero leitor e/ou telespectador da grande imprensa. Ele agora é um ator central no jogo político do poder que irá definir o futuro do país.

Talvez Moro tenha entendido tarde demais que nem tudo o que leu corresponde à verdade dos fatos. Existem pessoas por trás daquelas matérias ignominiosas, muitas delas que estão longe de ser como diziam a ele que eram. Isso faz toda uma diferença. Talvez, eu disse talvez, Sérgio Moro tenha percebido tardiamente que a “verdade” na qual acreditou nunca foi verdade verdadeira. Eram apenas mentiras criadas por interesses escusos, visando alçar o poder. Talvez ele hoje esteja apenas cumprindo um script no qual acreditou boa parte do tempo e não tem mais como voltar atrás.

No entanto, se, de fato, tiver existido, algum dia, algo de idealista em Sérgio Moro, talvez ele pratique um ato de grandeza e perceba que foi manipulado e nada do que ele achava se confirmou. Talvez Moro chegue à conclusão de que foi atraído para um cenário que não lhe compete, nunca lhe competiu. Esse seria o único ato de justiça que ele poderia praticar nessa altura dos fatos. Absolver Lula, antes de significar uma capitulação diante da falta de provas, seria um ato de grandeza e uma espécie de redenção. Talvez Moro seja, de fato, o idealista que muitos acreditam. A decisão que ele irá proferir no processo significará mais um julgamento dele do que de Lula, uma vez que Lula é julgado pelo povo e não por qualquer juiz de direito. Ainda está em tempo de Sérgio Moro perceber isso.

Acredito que Moro esteja atualmente no piloto automático. A pressão pesa sobre seus ombros. É visível. Moro, percebi isso no vídeo que ele gravou para o programa Fantástico, da Rede Globo, não está tão à vontade como antes. Apresenta-se com um semblante cansado, preocupado, tamanho o fardo que colocaram em suas mãos. Visivelmente, não está confortável com a situação. Ele chegou a um ponto que não tem retorno, salvo se ele for um verdadeiro idealista comprometido com o Direito e com a Justiça e reconhecer que esteve todo esse tempo errado, que não há provas e que, portanto, deve absolver Lula.

Caso ele não seja o verdadeiro idealista que muitos pensam que ele é, veremos a mesma coisa de sempre: Moro sucumbirá ao papel que ele aceitou encenar e irá condenar Lula. A questão é que, se ele fizer isso, entrará para a História como o homem que jogou o país na sua pior crise. A História não poupará Sérgio Moro. Nas mãos de Sérgio Moro não está apenas a liberdade de Lula, mas sim o destino da nação e de seu povo nas próximas décadas.

Na minha opinião, quem verdadeiramente está em julgamento é ele, Sérgio Moro, e não Lula. Existem causas em que quem termina se colocando na posição de julgado é o juiz da causa e não o réu. É o caso de Sérgio Moro no processo a que responde Lula no âmbito da Lava Jato. Não se enganem. Não é Lula quem está em julgamento no processo que tramita em Curitiba. É exatamente Sérgio Moro. Ele é quem está em julgamento, o seu senso de Justiça, seu apego à verdade e ao Direito. É o juiz confrontado com a causa e a sua consciência. Decidir causas é algo de suma importância. Vamos ver se realmente Sérgio Moro está à altura dos grandes juízes.

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“Lista de Janot” leva o país a uma encruzilhada

A assim denominada “lista de Janot”, referente aos nomes dos políticos importantes que foram acusados e serão investigados numa série de inquéritos que serão abertos a partir das delações premiadas de executivos do grupo Odebrecht, leva o país a uma escruzilhada. Chegará um momento que o país terá que escolher qual o caminho que irá trilhar: se pune todo mundo, se pune apenas alguns, basicamente os mais sacrificáveis do PMDB e do PSDB e todos os do PT que foram acusados, ou se não pune ninguém.

Depois que Dilma Rousseff nomeou Graça Foster presidenta da Petrobras em 2012, dando o passo decisivo para a criação da Lava Jato, o cenário para o PT não é dos mais animadores, antes o contrário. O principal risco que as ações erráticas de Foster e Rousseff podem significar para o PT é ver suas lideranças serem as únicas condenadas no esquema do Petrolão, considerando que a Lava Jato concentra todo o ódio de classe e político contra o Partido dos Trabalhadores e suas principais lideranças, principalmente Lula.

Se em algum momento, as duas senhoras “puritanas”, Foster e Dilma, acharam que o MPF, a PF e Justiça Federal iriam agir republicanamente e punir todo mundo, indistintamente, elas correm o risco de verem que nada disso vai acontecer. Que somente o PT será atingido significativamente. Uma coisa é agir republicanamente num ambiente republicano, onde as leis são aplicadas e cumpridas como deveriam. Outra coisa é ser republicano num ambiente não-republicano, onde as leis são aplicadas com parcialidade e atendendo a interesses políticos.

Essa parcialidade da Lava Jato é o que dificulta a proposta de anistia geral para todos os acusados, além dos erros que o PT cometeu no trato com os adversários políticos ao longo de 13 anos, achando que divergência política devia ser tratada como se fosse briga de torcida. Hoje, quando um acordo precisa ser construído, faltam condições e ambiente para um diálogo, diante das mágoas e ressentimentos recíprocos.

Faltou tino político em quem acreditou na imparcialidade das instituições e hoje, como preço a pagar pelo erro cometido, se vê envolvida nas acusações, como é o caso de Dilma Rousseff. Triste ironia. Ela achava que não respingaria nela. Não sei como pôde pensar isso. Culpo também seus assessores mais próximos, principalmente José Eduardo Cardozo e Aloísio Mercadante, que deviam ter percebido que os rumos que Dilma escolheu tomar quanto à questão na Petrobras eram catastróficos para o partido e para o país.

É totalmente equivocada a leitura que alguns andam fazendo do que realmente representou Graça Foster na eclosão da crise que acomete o país e levou ao golpe de estado. As ações erráticas de Graça Foster, divorciadas ideologicamente do Partido dos Trabalhadores e da estratégia petista para se manter no poder, fruto de seu perfil extra-partidário, ajudaram na perpetração do golpe de estado, essa é a verdade.

Muitas das posições de Graça Foster são iguais às posições antipetistas da Lava Jato. Foi ela quem primeiro proibiu que as construtoras posteriormente investigadas pela Lava Jato contratassem com a Petrobras, contrariando inclusive a posição de Dilma Rousseff, que queria diferenciar as pessoas das empresas. Foster soube de tudo via Marcelo Odebrecht muito antes, soube inclusive do envolvimento do PT. Foi o açodamento de Graça Foster, sua falta de compromisso partidário com o PT, que ajudaram à expulsão do partido do poder, inclusive à bancarrota de Dilma.

Foster era uma estranha no ninho. É inclusive cria da Odebrecht, onde havia ocupado cargo importante. Marcelo Odebrecht faz referência a uma troca de emails que comprovam que ela soube dos esquemas de corrupção envolvendo o PMDB e o PT. Ao invés de consultar as lideranças do partido para saber o que exatamente fazer, ela e Dilma agiram isoladamente e deu no que deu.

Dilma tem responsabilidade no próprio golpe de estado, isso hoje está claro a partir das delações dos Odebrecht. É essa a leitura que eu tenho, que coincide inclusive com a de Luis Nassiff nos dois últimos artigos que escreveu a respeito, intitulados, respectivamente, “Xadrez da lista de Janot, o senhor do tempo” e “Xadrez da lista de Janot, o senhor do tempo – 2“.

Num dos trechos do segundo artigo, Nassif, acertadamente, percebendo qual foi o papel de Dilma na ignição da crise, escreveu que “Primeiro, levaram os petistas e peemedebistas suspeitos. Como eu não fiz nada – diria Dilma Rousseff – deixei o campo livre para o Ministério Público e a Polícia Federal, para resolver, por mim, os problemas do presidencialismo de coalisão”. Esse trecho simboliza com maestria o que eu também penso que aconteceu.

Graça Foster havia sido alertada por Marcelo Odebrecht que o PT estava envolvido, num episódio em que o questionou acerca de um caso de pagamento de propina ao PMDB. Mesmo assim levou o caso ao ministério público, abriu procedimentos internos. Ou seja, Foster deu a ignição a tudo isso que vemos aí, comprometendo inclusive Dilma, que, encurralada pela sua posição moralista, mesmo quando foi beneficiada direta pelos atos de corrupção que irrigaram suas duas eleições, deu de costas para os companheiros de partido e da base aliada. Trairagem é isso aí.

Faltou maturidade política, malícia e a percepção de que ela já estava envolvida em tudo. Não podia jamais ter agido como agiu, principalmente por ser integrante do PT. Graça Foster ainda tem a desculpa de não ter sido nunca do PT. Mas a Dilma? Ela agiu errado sim, não mediu as consequências dos seus atos. Quis se apartar da situação quando não havia mais como. Hoje, paga por esse erro, porque os acusados passaram a acusá-la, mesmo que por retaliação. O fato é que ela se complicou. Talvez Foster saia ilesa. Dilma, acho muito difícil.

Em suma, alguns defensores de Lula e Dilma, equivocadamente, elogiam uma mulher, Graça Foster, que é uma das responsáveis pela construção do ambiente que levou ao golpe de estado e ao enquadramento das principais lideranças do PT, inclusive Lula e Dilma.

Não se deve cair na esparrela de querer diferenciar os corruptores dos corruptos. Essa posição, hoje em dia, é insustentável. Era um esquema onde os interesses de ambos os lados eram contemplados. Alguns cometem o erro de identificar a posição de Graça Foster com a do PT, quando ela era diametralmente oposta à posição do PT. O PT jogou o jogo do sistema político brasileiro. E Dilma , em sua falta de visão política, levou para a Petrobras uma pessoa sem qualquer compromisso partidário com o PT. Essa é a semente da Lava Jato e do golpe de estado. Tudo deriva daí. Todo o resto é consequência e se soma ao que aconteceu a partir daí.

Vejam trecho da delação premiada de Marcelo Odebrecht onde ele explica, detalhadamente, tudo isso:

Atualmente, temos três cenários possíveis em relação às condenações que serão geradas pela Lava Jato:

1 – Majoritariamente, com uma ou outra exceção sacrificável, até pela corrupção grosseira cometida, caso de Aécio Neves, José Serra, Geddel Vieira, Elizeu Padilha, Eduardo Cunha e outros do PMDB, o PT será o mais duramente atingido, com a condenação de seus principais nomes, de Lula a Dilma, passando por Palocci, Guido Mantega, Paulo Bernardo, Aloisio Mercadante etc;

2 – Todos os acusados serão condenados, indistintamente, pulverizando o sistema político-partidário brasileiro e nos deixando sem quadros, submetidos ao jugo de uma junta burocrática judicial-midiática, que irá pintar e bordar, contando com a inépcia do aventureiro que estará no comando do executivo;

3 – Ninguém dentre os acusados será condenado, do que depende a aprovação de uma lei que anistie o caixa 2 de campanha considerado ato de corrupção pela Lava Jato. A implementação dessa proposta depende do quanto as partes conseguirão superar suas diferenças, do quanto assumirão seus erros e do quanto terão a noção de que o que foi praticado era subjacente ao sistema político brasileiro, de um modo que não dava para se dissociar. Como disse Marcelo Odebrecht, todos os políticos eleitos até hoje fizeram o que foi feito no âmbito do Petrolão. Quem disser que não fez, estará mentindo. Então Dilma mente, Lula mente, FHC mente, Serra mente, Aécio mente, todos eles mentem quando dizem que nada sabiam. Sabiam sim, eu acredito em Odebrecht. Então vamos deixar de ser hipócritas e vamos falar das coisas como elas são. Não tem santo nessa história. Todo mundo errou. E considerando a dimensão dos erros, que todo mundo se anistie mutuamente, para que o país crie novas regras a partir de agora, sob pena de não sobrar ninguém para tocar o barco e o país cair nas mãos de uma versão brasileira de Silvio Berlusconi, como aconteceu na Itália depois das operações mãos limpas. E o nosso Berlusconi já tem nome e cara: trata-se do almofadinha, “Lulu de madame”, chamado João Dória. Aí é que esse país vai de mal a pior até a bancarrota total.

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Sexta Turma do TST confirma violação da Súmula nº 69 do Tribunal num caso de revelia da Caixa Econômica Federal

Foi disponibilizado ontem, 16/03/2017, com data de publicação considerada hoje, 17/03/2017, o acórdão da Sexta Turma do TST que deu provimento aos segundos embargos de declaração para apenas prestar esclarecimentos, sem efeito modificativo, num caso de uma reclamação trabalhista em que a Caixa Econômica Federal (CEF) é revel e confessa quanto à matéria de fato e, dessa forma, o trabalhador fazia jus a receber as verbas rescisórias tornadas incontroversas a partir da ausência de contestação com a multa de 50% do art. 467 da CLT, tudo conforme preceitua a Súmula nº 69 do TST, que trata precisamente da aplicação da referida multa nas hipóteses de revelia a confissão quanto à matéria de fato.

Para a minha desagradável surpresa, a Sexta Turma do TST efetivamente enfrentou o mérito da questão em sede de julgamento do Agravo de Instrumento, quando deveria fazer isso no julgamento do Recurso de Revista que havia sido interposto para impugnar o mérito da decisão do TRT que negou a aplicação da multa em todas as verbas rescisórias que tratavam de diferenças salariais e seus reflexos em décimos terceiros salários integrais, horas extras, depósitos mensais do FGTS etc.

Como o Recurso de Revista foi trancado, sob a inválida alegação de que estaria supostamente “prejudicado” diante do “acolhimento” da pretensão obreira, decisão que flagrantemente viola o direito do trabalhador, previsto no art. 896, alíneas “a” e “c”, da CLT, de recorrer contra a decisão do TRT que restringiu a aplicação da multa de 50% às férias mais 1/3 constitucional, à multa dos 40% do FGTS (deixando de fora os depósitos mensais do FGTS calculados com os reflexos das diferenças salariais de 50 meses) e ao décimo terceiro salário proporcional (devido apenas no último ano do contrato de trabalho, deixando de fora os décimos terceiros salários integrais que sofreriam os reflexos das diferenças salariais devidas no período do desvio de função, que aconteceu durante 50 meses), foi interposto o recurso de Agravo de Instrumento mostrando que era falsa e inválida a alegação de que o Recurso de Revista estaria supostamente “prejudicado”, principalmente quando o trabalhador impugnou a decisão do TRT por violação do art. 467 da CLT e da Súmula nº 69 do TST e pretendia que ela fosse reformada, não havendo que se falar em “acolhimento” da pretensão obreira apto a impedir o regular processamento do Recurso de Revista se o principal interessado mostrou claramente a sua irresignação com a decisão do TRT da 19ª Região quanto ao ponto da multa do art. 467 da CLT, na hipótese da Súmula nº 69 do TST, quando interpôs o referido recurso, com base no art. 896, alíneas “a” e “c”, da CLT, irresignação recursal esta que já tinha sido demonstrada inclusive nos dois recursos de embargos de declaração que foram anteriormente opostos perante o TRT (num total de três que terminaram sendo opostos no Regional), nos quais se requereu esclarecimentos sobre as razões pelas quais a aplicação da multa do art. 467 da CLT, na hipótese de revelia e confissão ficta tratada na Súmula nº 69 do TST, estava sendo restringida às verbas indicadas pelo Regional.

Nos SEGUNDOS Embargos de Declaração que opôs perante o acórdão da Sexta Turma do TST que julgou os primeiros Embargos de Declaração anteriormente opostos, a defesa do trabalhador impugnou a omissão do acórdão em analisar o ponto do Agravo de Instrumento que atacou o motivo usado pelo TRT para trancar o Recurso de Revista quanto ao pedido de reforma da restrição da aplicação da multa de 50% às verbas indicadas.

Em outras palavras, era dever do TST expressamente dizer se o trancamento, com base na alegação de que o Recurso de Revista estava supostamente “prejudicado” no ponto concernente à aplicação da multa de 50%, foi correto ou não.

No entanto, mesmo tendo que se pronunciar expressamente sobre este ponto do Agravo de Instrumento, que é o recurso que se encontra em julgamento, ao proferir a decisão que julgou os segundos Embargos de Declaração, ao invés de enfrentar essa específica questão acerca do trancamento do Recurso de Revista quanto ao ponto da multa, a Sexta Turma do TST, MAIS UMA VEZ, INCORREU EM OMISSÃO, pois passou, para a perplexidade da defesa do trabalhador, a julgar o mérito do pedido veiculado no Recurso de Revista em sede de julgamento do Agravo de Instrumento.

Por outra palavras, vale dizer: A Sexta Turma do TST se pronunciou sobre a questão relativa à extensão da aplicação da multa do art. 467 da CLT, na hipótese de revelia e confissão ficta tratada na Súmula nº 69 do TST, veiculada, no mérito, no Recurso de Revista, se OMITINDO de dar provimento ao Agravo de Instrumento e, consequentemente, sem destrancar o Recurso de Revista, o que flagrantemente ofende o devido processo legal, uma vez que existe o nítido efeito de fechar as portas recursais para o recurso dos Embargos cabíveis para a Seção de Dissídios Individuais, órgão recursal do TST que tem a competência de dirimir as divergências existentes entre as Turmas do TST ou reformar as decisões das Turmas do TST contrárias a súmula ou orientação jurisprudencial do Tribunal Superior do Trabalho ou súmula vinculante do Supremo Tribunal Federal, haja vista que os Embargos previstos no art. 894, II, da CLT, somente são cabíveis contra as decisões das Turmas do TST que efetivamente julgam o mérito do Recurso de Revista, o qual precisa ser destrancado para que isso aconteça.

Eis o que a Sexta Turma do TST disse no julgamento dos SEGUNDOS Embargos de Declaração que foram opostos pela defesa do trabalhador, conforme a ementa do acórdão, in verbis:

“EMBARGOS DE DECLARAÇÃO. MULTA DO ART. 467 DA CLT. Decidiu com acerto o Tribunal Regional, pois determinou a incidência da multa de 50% sobre as verbas decorrentes da dispensa sem justa causa deferidas na sentença, portanto, pagas a destempo, e incontroversas, nos exatos termos da Súmula 69 do TST e do art. 467 da CLT, sendo certo que as demais, ou seja, as controversas, como as horas extras e as diferenças salariais deferidas, bem como seus reflexos, não devem receber a incidência da referida multa. Consigna-se que o art. 467 da CLT é claro no sentido de que a única hipótese de pagamento da multa nele prevista é quando há parcelas rescisórias incontroversas e não pagas em audiência. Embargos de declaração providos apenas para prestar esclarecimento, sem efeito modificativo.”

Observa-se claramente que a Sexta Turma do TST, sob a inválida justificativa de prestar meros esclarecimentos, julgou, na verdade, o mérito do pedido do Recurso de Revista de reforma do acórdão do TRT quanto à extensão da aplicação da multa do art. 467, na hipótese de revelia e confissão ficta do empregador tratada da Súmula nº 69 do TST, e disse que ele era improcedente, o que notoriamente fez, inclusive, OMITINDO o fato de que se tratava de hipótese de incidência da Súmula nº 69 do TST, pois OMITIU da decisão o fato do caso tratar de um caso de revelia e confissão ficta da Caixa Econômica Federal, pretendo restringir à hipótese sub examine à mera aplicação do art. 467 da CLT, escondendo da discussão a revelia e a confissão ficta da empresa reclamada, efetivamente ocorrida e decretada nos autos do processo.

Ora, mas isso foi feito sem dar provimento ao Agravo de Instrumento para destrancar o Recurso de Revista, que tem o efeito de manter a decisão do TRT se omitindo de julgar o Agravo de Instrumento no ponto em que especificamente impugnou o motivo pelo qual o TRT negou trânsito à revista, o que claramente prejudica o direito do trabalhador de recorrer da decisão da Sexta Turma do TST para a Seção de Dissídios Individuais do TST pela via do recurso dos Embargos previstos no art. 894, II, da CLT, in verbis:

Art. 894. No Tribunal Superior do Trabalho cabem embargos, no prazo de 8 (oito) dias: (Redação dada pela Lei nº 11.496, de 2007)

(…)

II – das decisões das Turmas que divergirem entre si ou das decisões proferidas pela Seção de Dissídios Individuais, ou contrárias a súmula ou orientação jurisprudencial do Tribunal Superior do Trabalho ou súmula vinculante do Supremo Tribunal Federal. (Redação dada pela Lei nº 13.015, de 2014)

(…)

A decisão da Sexta Turma disse que o TRT estava certo quando restringiu a multa do art. 467 da CLT às verbas que indicou, mas nada falou sobre a decisão que trancou o Recurso de Revista, decisão completamente diversa e que trata da questão de saber se o Recurso de Revista estava supostamente “prejudicado” em virtude de um inexistente “acolhimento” da pretensão obreira, como afirmou o TRT quanto ao ponto da multa de 50% do art. 467 da CLT.

Entendo que a decisão da Sexta Turma do TST, além de produzir uma negativa de prestação jurisdicional quando não julgou o Agravo de Instrumento no ponto aqui debatido, efetivamente viola a Súmula nº 69 do TST e o art. 467 da CLT, uma vez que a CEF foi considerada, neste processo, revel e confessa quanto à matéria de fato e, dessa forma, a multa de 50% incide sobre todas as verbas rescisórias cobradas na reclamação trabalhista e deferidas pelo TRT, especialmente as diferenças salariais e seus reflexos, conforme indicado no Recurso de Revista.

Esse procedimento da Sexta Turma do TST é claramente um julgamento per saltum, ou seja, ele “salta” uma etapa, qual seja, a do julgamento do Agravo de Instrumento no ponto em que impugnou a decisão que trancou o Recurso de Revista interposto para impugnar o acórdão do TRT quanto à extensão da referida multa.

Tal procedimento ilegal da Sexta Turma do TST, conseqüência da negativa de prestação jurisdicional consistente em se recusar a apreciar o Agravo de Instrumento no ponto em que impugnou a decisão do TRT que trancou o Recurso de Revista interposto para impugnar o acórdão do TRT que restringiu a multa do art. 467 da CLT às férias mais um terço, à multa de 40% do FGTS e ao décimo terceiro salário proporcional do último ano do contrato de trabalho (2008), tem o efeito de fechar a via recursal dos Embargos para a SDI que ainda era cabível, nos termos do art. 894, inciso II, da CLT, pois é certo que não só a referida decisão violou direta e literalmente a Súmula nº 69 do TST, mas também existem inúmeras decisões de outras Turmas do TST que entendem de forma diferente da que entendeu a Sexta Turma acerca da extensão da aplicação da multa de 50% nos casos de revelia e confissão quanto à matéria de fato por parte do empregador, sendo pertinente citar, a título de exemplo, a seguinte decisão da Terceira Turma do TST, que versa sobre a aplicação da multa do art. 467 nos casos de revelia e confissão ficta, in verbis:

“MULTA DO ART. 467 DA CLT.

O Regional negou provimento ao apelo patronal, pelos seguintes fundamentos (fl. 67-PE):

“Contra a aplicação da multa em epígrafe, alega a empresa Recorrente que ‘a demanda referiu-se a pleitos controversos, onde carecia de constituição do direito pela Reclamante’.

Sem razão.

A multa prevista no art. 467 da CLT deve incidir sobre as verbas trabalhistas incontroversas. Assim, não instaurada qualquer controvérsia acerca do direito às verbas rescisóriashaja vista a revelia e a confissão ficta da ré quanto à matéria fática -, faz jus a autora ao pagamento da multa em questão.

Aplica-se na espécie a Súmula 69 do TST, verbis: ‘A partir da Lei nº 10.272, de 5 de setembro de 2001, havendo rescisão do contrato de trabalho e sendo revel e confesso quanto à matéria de fato, deve ser o empregador condenado ao pagamento das verbas rescisórias, não quitadas na primeira audiência, com acréscimo de 50% (cinquenta por cento)’.

Nego provimento.”

A ré não se conforma com a condenação, indicando ofensa aos arts. 302, I, do CPC e 467 da CLT. Transcreve arestos.

Tendo o recurso de revista por escopo a uniformização da jurisprudência trabalhista, nenhuma utilidade ver-se-á no processamento de semelhante apelo, quando o tema brandido for objeto de súmula ou de orientação jurisprudencial da Seção de Dissídios Individuais do Tribunal Superior do Trabalho, situações em que a missão da Corte ter-se-á, previamente, ultimado.

Tal diretriz, antes contida no art. 896, a, parte final, da CLT e na Súmula 333/TST, está, hoje, consagrada pelo mesmo art. 896, § 7º, do Texto Consolidado.

Para o caso dos autos, tem-se que, na dicção da Súmula 69 desta Corte, “a partir da Lei nº 10.272, de 05.09.2001, havendo rescisão do contrato de trabalho e sendo revel e confesso quanto à matéria de fato, deve ser o empregador condenado ao pagamento das verbas rescisórias, não quitadas na primeira audiência, com acréscimo de 50% (cinquenta por cento)”.

Diante de tal quadro, não visualizo potencial ofensa aos dispositivos evocados, estando superada a jurisprudência colacionada.

Mantenho o r. despacho agravado.

Em síntese e pelo exposto, conheço do agravo de instrumento e, no mérito, nego-lhe provimento.

ISTO POSTO       

ACORDAM os Ministros do Tribunal Superior do Trabalho, por unanimidade, conhecer do agravo de instrumento e, no mérito, negar-lhe provimento.

Brasília, 19 de novembro de 2014.

Firmado por Assinatura Eletrônica (Lei nº 11.419/2006)

Alberto Luiz Bresciani de Fontan Pereira

Ministro Relator”

Vejam que nessa decisão acima, a Terceira Turma do TST, por entender que a decisão recorrida encontrava amparo na Súmula nº 69 do TST, manteve uma decisão de outro TRT que expressamente disse o que se segue:

“Contra a aplicação da multa em epígrafe, alega a empresa Recorrente que ‘a demanda referiu-se a pleitos controversos, onde carecia de constituição do direito pela Reclamante’.

Sem razão.

A multa prevista no art. 467 da CLT deve incidir sobre as verbas trabalhistas incontroversas. Assim, não instaurada qualquer controvérsia acerca do direito às verbas rescisóriashaja vista a revelia e a confissão ficta da ré quanto à matéria fática -, faz jus a autora ao pagamento da multa em questão.

Aplica-se na espécie a Súmula 69 do TST, verbis: ‘A partir da Lei nº 10.272, de 5 de setembro de 2001, havendo rescisão do contrato de trabalho e sendo revel e confesso quanto à matéria de fato, deve ser o empregador condenado ao pagamento das verbas rescisórias, não quitadas na primeira audiência, com acréscimo de 50% (cinquenta por cento)’.

Nego provimento.”

Outro exemplo de decisão, dessa vez da Quinta Turma do TST, extraído do PROCESSO Nº TST-RR-3345/2002-016-12-00.5, que expressamente fala que as verbas requeridas na petição inicial, em decorrência da revelia e da confissão ficta do empregador, se tornam incontroversas para fins de aplicação da multa do art. 467 da CLT:
RECURSO DE REVISTA. PROCEDIMENTO SUMARÍSSIMO. MULTA DO ART. 467 DA CLT. REVELIA. As verbas requeridas pelo reclamante na inicial tornaram-se incontroversas, uma vez que as reclamadas principais não apresentaram defesa, ficando constatada a revelia, sendo devida, por conseguinte, a multa prevista no art. 467 da CLT. Dessa forma, segundo o disposto na Súmula nº 69 desta Corte, havendo rescisão do contrato de trabalho e sendo revel e confesso quanto à matéria de fato, deve ser o empregador condenado ao pagamento das verbas rescisórias, não quitadas na primeira audiência, com acréscimo de 50% (cinquenta por cento). Recurso de revista a que se dá provimento.
 
(…)”

Ou seja, a ausência de contestação por parte do empregador, nos termos da Súmula nº 69 do TST, torna incontroversas, para fins de aplicação da multa do art. 467 da CLT, todas as verbas rescisórias pleiteadas na reclamação trabalhista, sendo absolutamente improcedente a Sexta Turma do TST dizer que as diferenças salariais e seus reflexos, verbas rescisórias que foram pleiteadas na reclamação trabalhista proposta pelo trabalhador e que foram efetivamente deferidas pelo TRT no julgamento dos primeiros Embargos de Declaração opostos perante aquele Regional, eram verbas “controversas” quando se tem em mente que a CEF efetivamente foi considerada, no processo, revel e confessa quanto à matéria de fato.

Como se observa, diante da OMISSÃO da Sexta Turma do TST em efetivamente enfrentar e julgar o mérito do Agravo de Instrumento interposto pelo trabalhador contra a decisão do TRT que trancou o Recurso de Revista no ponto em que se requereu a ampliação da aplicação da multa do art. 467 da CLT, são plenamente cabíveis os TERCEIROS Embargos de Declaração alegando tudo isso, até a título de pré-questionamento da matéria, pois é evidente que se está diante de uma inequívoca negativa de prestação jurisdicional, que viola o inciso XXXV do art. 5º da Constituição Federal, que trata da inafastabilidade da jurisdição, e viola o inciso IX do art. 93 da Constituição Federal, pois, ao não enfrentar o ponto do Agravo de Instrumento que deveria enfrentar, a Sexta Turma do TST não profere decisão devidamente fundamentada, vício da decisão caracterizado pelo fato da Sexta Turma do TST não ter se pronunciado e/ou julgado se o trancamento do Recurso de Revista foi correto ou não no ponto em que atacou a aplicação da multa do art. 467 da CLT por parte do TRT.

De outra banda, restam diretamente violadas as garantias constitucionais do devido processo legal, do contraditório e da ampla defesa, previstas nos incisos LIV e LV do art. 5º da Constituição Federal, quando, por esta OMISSÃO, se veda o acesso do trabalhador à Seção de Dissídios Individuais pela via do recurso de Embargos previstos no art. 894, inciso II, da CLT, efeito este do acórdão da Sexta Turma do TST que nitidamente prejudica o trabalhador e favorece ilegalmente à Caixa Econômica Federal, que se verá livre de pagar a multa de 50% sobre a maior parte das verbas rescisórias incontroversas que foram deferidas no processo, quais sejam, as diferenças salariais devidas por desvio de função ocorrido no período de 50 (cinquenta) meses e os seus reflexos nas parcelas de 13ºs salários integrais, aviso prévio, depósitos mensais de FGTS e horas extras no período do desvio de função.

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Sexta Turma do TST viola Súmula nº 69 do Tribunal num caso de revelia da Caixa Econômica Federal

Impressionante o quanto a Justiça do Trabalho deste país está instrumentalizada politicamente para prejudicar o trabalhador brasileiro.

Vou discorrer agora, de forma breve tanto quanto possível, sobre o absurdo jurídico que acontece atualmente num processo trabalhista em que a Caixa Econômica Federal (CEF) é a parte reclamada, no qual a Sexta Turma do TST violou a Súmula nº 69 do Tribunal ao se recusar a aplicar a multa de 50% do art. 467 da CLT nas verbas rescisórias incontroversas.

Em junho de 2008, foi proposta uma reclamação trabalhista contra a CEF. O trabalhador venceu a ação, depois de uma árdua batalha judicial em sede de segunda instância, onde se consegui reverter uma situação desfavorável após o julgamento dos dois recursos ordinários interpostos pelo trabalhador e pela CEF.

Para ser sucinto, aconteceu que o trabalhador ganhou cinquenta meses de diferenças salariais por desvio de função no sentido de receber como gerente de relacionamento, verba que geraria reflexos nas demais verbas trabalhistas, principalmente horas extras, aviso prévio, férias mais 1/3 constitucional, 13º salários, depósitos mensais do FGTS e na multa dos 40% do FGTS.

Acontece que, como a CEF foi revel no processo, o trabalhador faria jus, nos termos da Súmula nº 69 do TST, à aplicação da multa de 50% prevista no art. 467 da CLT, que diz o seguinte:

“Art. 467. Em caso de rescisão de contrato de trabalho, havendo controvérsia sobre o montante das verbas rescisórias, o empregador é obrigado a pagar ao trabalhador, à data do comparecimento à Justiça do Trabalho, a parte incontroversa dessas verbas, sob pena de pagá-las acrescidas de cinqüenta por cento”. (Redação dada pela Lei nº 10.272, de 5.9.2001)”

A Súmula nº 69 do TST é muito clara sobre a aplicação da multa de 50% prevista no art. 467 da CLT nos casos de revelia e confissão ficta do empregador:

“SUM-69 RESCISÃO DO CONTRATO (nova redação) – Res. 121/2003, DJ 19, 20 e 21.11.2003

A partir da Lei nº 10.272, de 05.09.2001, havendo rescisão do contrato de trabalho e sendo revel e confesso quanto à matéria de fato, deve ser o empregador condenado ao pagamento das verbas rescisórias, não quitadas na primeira audiência, com acréscimo de 50% (cinqüenta por cento).”

No julgamento dos primeiros Embargos de Declaração que foram opostos perante o TRT , a desembargadora relatora reconheceu que havia errado quanto às diferenças salariais por desvio de função e condenou a CEF a este pagamento.

No tocante à multa de 50%, também reconheceu o erro, pois havia anteriormente negado a aplicação porque considerou que o fato da CEF ter pago na data aprazada a rescisão do contrato, isso afastaria a incidência da multa, quando a incidência da multa deriva tão-somente da revelia da CEF, nos termos da Súmula nº 69 do TST, uma vez que, se ela não compareceu à audiência onde deveria apresentar contestação, automaticamente todas as verbas rescisórias cobradas na reclamação trabalhista se tornaram incontroversas para fins de aplicação da multa do art. 467 da CLT.

No entanto, na hora de dizer sobre quais verbas a multa de 50% deveria incidir, a desembargadora relatora restringiu a aplicação apenas à multa do 40% do FGTS (deixando de fora os depósitos mensais do FGTS que sofreriam os efeitos das diferenças salariais deferidas por desvio de função), às férias mais 1/3 constitucional e ao 13º salário PROPORCIONAL de 2008 (deixando de fora os 13ºs salários integrais dos anos em que ocorreram o desvio de função).

Essa decisão até hoje está provocando um prejuízo absurdo nos direitos trabalhistas do trabalhador, verdadeira lesão ao trabalhador, que se encontra atualmente flagrantemente lesado pela Justiça do Trabalho brasileira, pois a multa de 50% deveria incidir sobre as seguintes verbas:

1 – Diferenças salariais dos 50 meses nos quais ocorreu o desvio de função;

2 – Depósitos mensais do FGTS devidos no período do desvio de função, os quais sofreriam os reflexos das diferenças salariais;

3 – Horas extras deferidas e finalmente

4 – 13ºs salários integrais devidos no período do desvio de função.

Todas essas verbas são de natureza salarial e sempre sofreram a incidência da multa prevista no art. 467 da CLT, mesmo antes da alteração deste artigo feita pela Lei nº 10.272/2001, que AMPLIOU O ROL das verbas que sofreriam a incidência da multa quando disse que as verbas rescisórias seriam objeto de aplicação da multa de 50%, quando antes apenas falava em verbas de natureza salarial.

Como se observa, o trabalhador está deixando de receber um valor significativo por conta dessa decisão absolutamente ilegal e danosa ao seu patrimônio, que claramente protege os interesses da CEF em franco prejuízo dos interesses e direitos do trabalhador, o qual, não seria demais dizer, está sendo visivelmente surrupiado pela Justiça do Trabalho, que intencionalmente se recusou a aplicar a multa de 50% prevista no art. 467 da CLT em verbas rescisórias que ela normalmente deveria incidir.

Depois da defesa do trabalhador tentar, em dois Embargos de Declaração sucessivos, opostos posteriormente aos primeiros Embargos de Declaração, obter esclarecimentos sobre as razões pelas quais as demais verbas rescisórias não sofreriam a incidência da multa de 50%, o TRT, após dar provimento parcial aos dois recursos, acabou repetindo na última decisão o que já havia dito antes, o que seja, que a multa somente incidiria sobre a verbas anteriormente indicadas e que o recurso para modificar isso não seria os Embargos de Declaração, o que fez sem prestar os esclarecimentos requeridos, o que foi pedido até para fins de pré-questionamento da matéria, técnica processual que é feita visando preparar a interposição do cabível Recurso de Revista para o TST.

Após o julgamento dos terceiros Embargos de Declaração e diante da recusa em prestar os esclarecimentos requeridos, o trabalhador interpôs Recurso de Revista para o TST, alegando violação do art. 467 da CLT, conforme interpretação da Súmula nº 69 do TST, que também restou violada.

Aqui começa o maior absurdo dessa história toda, que até o presente momento me deixa totalmente perplexo com o fato de termos uma justiça do trabalho tão injusta e desonesta como a que temos neste país.

O TRT trancou o Recurso de Revista quanto ao ponto da multa de 50% alegando que o recurso estaria “prejudicado” neste ponto porque a pretensão do trabalhador havia sido supostamente “acolhida”, mesmo quando o trabalhador vinha se opondo à restrição da aplicação da multa desde pelo menos os segundos Embargos de Declaração que haviam sido opostos.

Contra essa decisão, o trabalhador interpôs o competente recurso de Agravo de Instrumento, visando destrancar o Recurso de Revista quanto ao ponto da multa de 50%, argumentando que, diferentemente do que alegou o TRT, o Recurso de Revista não estaria em nada prejudicado quanto à multa de 50% do art. 467 da CLT, sendo falsa a alegação de que a pretensão do trabalhador havia sido acolhida, tanto que houve a interposição do Recurso de Revista impugnando a decisão por violação do art. 467 da CLT e da Súmula nº 69 do TST, tendo inclusive sido juntadas decisões de outros Tribunais Regionais do Trabalho que demonstravam a existência do dissídio jurisprudencial, pois em outras decisões, as verbas que ficaram de fora na decisão do TRT sofriam normalmente a incidência da multa de 50%.

Depois de passar anos adormecendo no TST, finalmente no ano passado o Agravo de Instrumento foi julgado e, no ponto da multa de 50%, nada foi dito, tendo o TST negado provimento ao Agravo de Instrumento, mantendo a decisão agravada que trancou o Recurso de Revista.

O trabalhador opôs os primeiros Embargos de Declaração, recurso cabível contra as decisões omissas, contraditórias, obscuras ou que contenham erros materiais, indicando precisamente a omissão do acórdão do TST sobre o ponto da multa de 50%, já que nada, absolutamente nada havia sido dito a este respeito no acórdão que negou provimento ao Agravo de Instrumento, isto é, o TST não se pronunciou sobre o fundamento da decisão que havia trancado o Recurso de Revista no ponto da referida multa.

Nos primeiros Embargos de Declaração, o trabalhador requereu que fosse corrigida a omissão no sentido de, enfrentando os argumentos do Agravo de Instrumento que impugnaram a decisão que trancou o Recurso de Revista no ponto da multa de 50%, dar provimento ao recurso quanto a este ponto e finalmente julgar o mérito do Recurso de Revista em relação à multa de 50%, isto é, corrigindo a omissão do acórdão que negou provimento ao Agravo de Instrumento, o TST deveria dizer, primeiro, se a decisão que trancou o Recurso de Revista quanto ao ponto da multa estava correta quando disse que o recurso estaria “prejudicado” e, segundo, se entendesse que estava errada, deveria dar provimento ao Agravo de Instrumento quanto a este ponto e, consequentemente, julgando o mérito do Recurso de Revista quanto à extensão da aplicação da multa prevista no art. 467 da CLT, deveria dizer se a aplicação da multa feita pelo TRT foi correta ou não, se estava certa a restrição, se as demais verbas, de fato, não deviam receber a multa etc.

No julgamento desses primeiros Embargos de Declaração opostos no TST, aos quais foram dado provimento para fins de prestar esclarecimentos, mas sem efeito modificativo da decisão embargada, eis o que surpreendentemente disse o TST, in verbis:

Por fim, com relação ao pedido de aplicação da multa do art. 467 da CLT com incidência em todas as verbas rescisórias, inclusive nas diferenças salariais por desvio de função, nos depósitos de FGTS mensais e nas horas extras e reflexos, verifica-se que não restou omissa a decisão regional, que deferiu o pedido de multa do art. 467 da CLT com incidência na multa de 40% do FGTS, férias com 1/3 e 13º salário proporcional, na forma da Súmula 69 do TST. Logo, a insurgência do embargante demonstra seu inconformismo com o resultado do julgamento do recurso interposto, manifestado mediante a utilização de instrumento processual inadequado para tanto.

Ressalte-se que os embargos declaratórios não podem ser utilizados com a finalidade de sustentar incorreções no acórdão impugnado ou de propiciar um novo exame da própria questão de fundo, de modo a viabilizar, em instância processual absolutamente inadequada, a desconstituição de ato decisório regularmente proferido, conforme pretende o recorrente.”

Vejam que o ministro relator disse que o trabalhador teria demonstrado inconformismo com a decisão proferida pelo TRT mediante a utilização de instrumento processual inadequado para tanto, mesmo quando ele opôs os Embargos de Declaração para pedir esclarecimentos acerca das razões pelas quais as demais verbas não sofreriam a multa, já que o TRT apenas listou as verbas que sofreriam a incidência da multa e nada disse sobre os motivos pelos quais apenas aquelas sofreriam a incidência.

Pior de tudo, esses terceiros Embargos de Declaração foram parcialmente acolhidos, ou seja, nem mesmo o TRT chegou a dizer que a via eleita era inadequada, tanto que conheceu do recurso e deu provimento parcial.

De qualquer forma, ainda que se pretenda dizer que o trecho acima transcrito classificou como inadequados não os Embargos de Declaração opostos perante o TRT, mas sim os Embargos de Declaração opostos perante o TST contra o acórdão que negou provimento ao Agravo de Instrumento, tal alegação é completamente improcedente pelos seguintes motivos:

(i) O acórdão do TST (e não do TRT ou “regional”, que foi o termo usado no trecho acima transcrito) que negou provimento ao Agravo de Instrumento efetivamente foi OMISSO em relação ao ponto da multa de 50% do art. 467 da CLT;

(ii) O trabalhador efetivamente interpôs o Recurso de Revista para impugnar a aplicação da multa da forma restritiva que foi feita pelo TRT e era dever do TST julgar isso, o que deveria fazer somente depois de apreciar o Agravo de Instrumento que atacou a decisão que trancou o Recurso de Revista quanto à questão da extensão da multa, ponto que não foi apreciado pelo TST.

Em outras palavras, descabe qualquer alegação de inadequação da via eleita para veicular as irresignações recursais quando se tem em mente que o Recurso de Revista que foi interposto expressamente impugnou a decisão do TRT quanto ao ponto da multa de 50% e, posteriormente, o referido TRT trancou o Recurso de Revista, alegando que ele estaria “prejudicado” quanto a este ponto em razão de um alegado “acolhimento” da pretensão obreira.

Logo, o trabalhador não se valeu de recurso inadequado para atacar essa decisão quando manejou o Agravo de Instrumento, tendo o TST claramente se omitido de apreciar este ponto específico do recurso no acórdão que lhe negou provimento, omissão que voltou a acontecer no julgamento dos Embargos de Declaração que foram opostos quando, tergiversando ao evitar enfrentar os argumentos do Agravo de instrumento que impugnaram o trancamento do Recurso de Revista, passou a discorrer sobre uma suposta inadequação dos Embargos de Declaração opostos para atacar precisamente a omissão anterior, observada quando do julgamento do Agravo de Instrumento, o que se fez inclusive por meio da intencional confusão entre a (i) omissão do acórdão do TST que negou provimento ao Agravo de Instrumento, que não apreciou o ponto do recurso que impugnou a decisão que trancou o Recurso de Revista quanto à questão da extensão da multa de 50% do art. 467 CLT e a (ii) omissão do acórdão do TRT que restringiu a aplicação da multa.

Como se observa, em qualquer das duas hipóteses, não há que se falar em inadequação da via eleita de que se valeu o trabalhador para veicular suas irresignações recursais. Manejou corretamente o Recurso de Revista e, posteriormente, manejou corretamente o Agravo de Instrumento, tendo ainda manejado corretamente os Embargos de Declaração diante da omissão do TST.

Percebendo a intenção de negar a prestação jurisdicional para evitar, dando uma de “João sem braço”, que o trabalhador recebesse os seus direitos no valor devido (com acréscimo de 50% no montante das verbas rescisórias incontroversas deferidas), já que o que o TST tinha que fazer no julgamento do Agravo de Instrumento era dizer se o trancamento do Recurso de Revista quanto à multa de 50% foi correto ou não, o que exigiria a apreciação da alegação de que o recurso estaria “prejudicado” quanto a este ponto, o trabalhador opôs os segundos Embargos de Declaração e apontou todas essas omissões, expressamente arguindo a negativa de prestação jurisdicional que acarreta nulidade absoluta do julgado, uma vez que o TST, até aquele momento, não havia dito se o trancamento do Recurso de Revista feito pelo TRT foi correto.

O recurso estava pautado para hoje e foi julgado. Para a desagradável surpresa da defesa do trabalhador, houve o provimento dos segundos Embargos de Declaração, mais uma vez, mas sem os efeitos modificativos da decisão embargada.

Ou seja, o TST manteve a decisão anterior e, consequentemente, manteve a decisão do TRT que trancou o Recurso de Revista, mantendo a aplicação restritiva da multa de 50% às verbas por ele indicadas.

Até o momento, a defesa do trabalhador ainda não teve acesso à segunda decisão do TST, que será publicada nos próximos dias. Estou muito curioso sobre o que foi dito nessa segunda decisão para negar o direito do trabalhador, amplamente amparado por decisões de vários Tribunais, inclusive do próprio TST.

Eu imagino que o ministro relator irá dizer que a matéria não se encontra devidamente pré-questionada, o que irá fazer alegando que, como o acórdão que julgou os terceiros Embargos de Declaração opostos perante o TRT se limitou a repetir o que havia dito antes acerca da amplitude da multa, a matéria não estaria pré-questionada como deveria estar, pois os fundamentos do recurso não teriam sido enfrentados.

Esse entendimento é completamente improcedente, uma vez que, efetivamente, o TRT enfrentou a matéria, que se encontra devidamente pré-questionada.

Eis o que o que o TRT julgou, quanto ao ponto da multa de 50%, nos terceiros e últimos Embargos de Declaração que foram opostos pelo trabalhador na segunda instância, in verbis:

“De fato, possui razão o embargante ao alegar que, por força do que já fora decidido anteriormente, não poderia este Juízo simplesmente se negar a apreciar o pleito formulado, alegando que não havia pedido na exordial.

Assim, sanando a omissão apontada, passo a decidir acerca da extensão da decisão sobre a aplicação da multa de 50%, da Súmula nº 69, do TST.

Neste sentido, cumpre observar que este Regional já decidiu acerca da extensão da referida multa, quando assim registrou (fl. 536):

“A incidência do entendimento jurisprudencial invocado pelo autor, tem fundo em norma expressa, Lei nº 10.272/2001. Por tal motivo, e considerando que o v. Acórdão não fez menção às parcelas rescisórias deferidas, passo a sanar o equívoco, ao tempo que determina-se a incidência do acréscimo de 50% sobre tais verbas – multa de 40% do FGTS, férias com 1/3 e 13º salário proporcional.”

Dessa maneira, descabe qualquer tentativa de modificar este entendimento, em sede de embargos de declaração.

Entretanto, a fim de evitar-se novos atos dilatadores, registremos que a extensão da multa da Súmula nº 69, do TST deverá se limitar a incidir sobre os seguintes títulos: multa de 40% do FGTS, férias com 1/3 e 13º salário proporcional, tal qual já decidido à fl. 536.

Ante o exposto, conheço dos terceiros embargos de declaração, para, sanando a omissão apontada, determinar que faça constar no acórdão que julgou os segundos embargos de declaração, como se nele estivesse transcrito, os seguintes termos:

A multa de 50%, prevista na Súmula nº 69, do TST, deverá incidir, apenas, sobre os seguintes títulos: multa de 40% do FGTS, férias com 1/3 e 13º salário proporcional, tal qual já decidido à fl. 536.”

Veja que o desembargador relator do TRT expressamente disse que a aplicação da multa de 50% teria sido feita com base na Súmula nº 69 do TST, o que é suficiente para caracterizar o pré-questionamento da matéria.

Ora, no Recurso de Revista o trabalhador impugnou esse entendimento como violador da Súmula nº 69 do TST e do art. 467 da CLT, requerendo a reforma do acórdão quanto a este ponto no sentido de ampliar a aplicação da multa.

Portanto, a matéria se encontra devidamente pré-questionada, com citação expressa da Súmula nº 69 do TST como fundamento da decisão, súmula que, por sua vez, expressamente cita a lei que alterou o art. 467 da CLT, e cabia um pronunciamento de mérito do TST, o que aconteceria no julgamento do Recurso de Revista.

Como o Recurso de Revista foi trancado neste ponto sob a alegação de que estaria “prejudicado”, cabia antes dar provimento ao Agravo de Instrumento para apreciar o mérito do Recurso de Revista quanto ao ponto da multa, mas o TST se recusou a apreciar os argumentos do Agravo de Instrumento que enfrentavam esse ponto, os quais demonstraram cabalmente a invalidade da decisão que disse que o recurso estaria “prejudicado”.

Não sei como um recurso que impugna a decisão como errada está “prejudicado”.

Estou muito curioso para saber o que raios o TST decidiu para não reconhecer o direito do trabalhador, uma vez que a incidência da multa do art. 467 da CLT nas verbas rescisórias como diferenças salariais, horas extras, décimos terceiros salários, depósitos mensais do FGTS etc é plenamente reconhecida por doutrina e jurisprudência, isso de forma uníssona, como se observa pelas seguintes decisões do TST, in verbis:

Ementa:
RECURSO DE REVISTA. MULTA DO ART. 467 DA CLT. ABRANGÊNCIA.

A Lei nº 10.272/2001 conferiu nova redação ao art. 467, caput, da CLT, não se restringindo à incidência da penalidade sobre os salários incontroversos, alcançando as verbas rescisórias incontroversas, ficando, assim, consideravelmente ampliado seu âmbito de abrangência. Por conseguinte, inserindo-se os depósitos do FGTS não recolhidos e a respectiva multa de 40% no conceito amplo de verbas rescisórias, e não tendo sido pagos no prazo legal, incide a respectiva multa. Precedentes desta Corte. Recurso de revista a que nega provimento.

Processo: RR – 88500-36.2007.5.05.0033 Data de Julgamento: 16/09/2009, Relatora Ministra: Kátia Magalhães Arruda, 5ª Turma, Data de Divulgação: DEJT 25/09/2009.

Ementa:
RECURSO DE REVISTA. MULTA DO ARTIGO 467 DA CLT – EXTENSÃO DO CONCEITO DE VERBAS RESCISÓRIAS – SALDO DE SALÁRIOS NÃO PAGOS.

O saldo de salários e os salários vencidos são verbas rescisórias para fins de aplicação da multa do artigo 467 da CLT. Recurso de revista conhecido e provido.

Processo: RR – 170600-37.2005.5.01.0063 Data de Julgamento: 17/03/2010, Relator Ministro: Renato de Lacerda Paiva, 2ª Turma, Data de Divulgação: DEJT 30/03/2010.

Ementa:
(…) MULTA PREVISTA NO ARTIGO 467 DA CONSOLIDAÇÃO DAS LEIS DO TRABALHO.

São isentas de controvérsia, para o fim da multa do artigo 467 da CLT, as verbas de natureza trabalhista que deveriam ter sido adimplidas no curso do contrato de trabalho e que, portanto, independem da discussão acerca da modalidade de rescisão contratual. Não há cogitar em ofensa ao artigo 467 da CLT, porquanto a mera impugnação dos pedidos sem a apresentação do recibo de pagamento das verbas correspondentes não tornam controvertidas as parcelas. Ao contrário, a falta de recibo de pagamento torna incontroverso o direito do empregado às verbas rescisórias. Recurso de revista não conhecido. (…)

Recurso de revista não conhecido.

Processo: RR – 61900-98.2002.5.12.0019 Data de Julgamento: 04/11/2009, Relator Ministro: Lelio Bentes Corrêa, 1ª Turma, Data de Divulgação: DEJT 13/11/2009.

Ementa:
AGRAVO DE INSTRUMENTO. MULTA DO ARTIGO 467 DA CLT.

O Tribunal a quo entendeu ser devida a multa, prevista no artigo 467 da CLT, com relação às parcelas do FGTS que não foram recolhidas durante o vínculo empregatício, uma vez que restaram incontroversas e deveriam ter sido pagas na primeira audiência. Dessa forma, não se configura violação ao referido dispositivo legal. Divergência jurisprudencial inespecífica, na forma da Súmula 296 do TST. Agravo de Instrumento não provido.

Processo: AIRR – 40740-35.2004.5.06.0012 Data de Julgamento: 01/04/2009, Relator Ministro: José Simpliciano Fontes de F. Fernandes, 2ª Turma, Data de Divulgação: DEJT 24/04/2009.

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