O Ocaso de Elias Canetti

Voltando a falar do Nobel de Literatura de 1981, Elias Canetti, gostaria de deixar registrado o quanto o ser humano é suscetível de análises negativas em termos de caráter. No final da vida ou de sua carreira literária brilhante, Canetti se expôs pessoalmente de uma forma tão comprometedora que é perfeitamente possível vislumbrar que ele sofreu um autêntico ocaso.

Canetti, escritor judeu sefardim de língua alemã, escreveu grandes livros. Os escritores brasileiros pós-modernos que tinham uma certa originalidade e notável força literária, como Rubem Fonseca e Ignácio de Loyola Brandão (ainda vivo), o tinham em alta conta.

Ele escreveu um único monumental romance, publicado em 1935, sua estreia como escritor, traduzido para todas as línguas como “Auto-De-Fé” (em alemão, o romance se chama “Die Blendung”, que se poderia traduzir em português como “A Cegação” ou “O Ofuscamento”). O grande escritor brasileiro Ignácio de Loyola Brandão, particularmente, escreveu sobre a experiência de ler “Auto-de-Fé” quando esteve em Berlim no início dos anos 80, fato narrado no seu livro “O Verde Violentou o Muro”.

“Auto de Fé” é um dos maiores registros literários do ambiente centro-europeu anterior à II Guerra Mundial, que já mostrava as características sociais que levariam o mundo à loucura do maior conflito bélico da história da humanidade.

Ele também escreveu um tratado antropológico único em seu estilo, chamado “Massa e Poder”, um livro que ele escreveu durante 35 (trinta e cinco) anos, extremamente denso, diferente de tudo o que você pode ler em qualquer lugar. Canetti decidiu escrever sobre os fenômenos de massa e poder quando testemunhou, in loco, manifestações ocorridas em Viena, cidade em que ele residia na época e estudava a graduação do curso de Química, profissão que nunca exerceu, em 15 de julho de 1927, em repúdio a uma sentença de absolvição dos acusados da mortes de operários. Os trabalhadores reagiram principalmente ao escárnio do partido do governo em considerar a sentença justa, mais até do que a sentença em si.

Canetti presenciou os protestos e sentiu a força das massas e o quanto era um fenômeno diferente de tudo o que ele presenciou, além de se relacionar estritamente com a noção de poder. Dessa experiência, da qual ele nunca esqueceu, nasceu a sua obsessão em entender e estudar os fenômenos de massa e poder.

“Massa e Poder” é um estudo, extremamente erudito, sobre os movimentos de massa e sobre o poder, analisado nas mais diversas esferas sociais e culturais ao longo da história, absolutamente fascinante.

“Massa e Poder” é completamente diferente de tudo o que você já leu até hoje que possa ser, de longe, comparado com o livro. Provavelmente você ficará fora da realidade por alguns dias depois de lê-lo. Isso aconteceu comigo, quando eu li a tradução da UnB e depois da Cia das Letras.

Os estudiosos, cientistas sociais e intelectuais em geral que se aventuraram a ler “Massa e Poder” notaram uma das maiores características do opus magnum de Canetti que é o seu estilo próprio, original, singular, em abordar o tema do livro, sem beber em nenhuma fonte anterior.

A originalidade de “Massa e Poder” é tão grande que muitos apontaram que ele teria criado uma nova disciplina em ciência sociais, que é aquela que analisa as patologias antropológicas da sociedade, de forma profunda e com linguagem literária singularmente imagética.

Canetti também escreveu várias peças de teatro únicas, como a mais conhecida, chamada “Comédia da Vaidade” (no alemão “Komödie der Eitelkeit“), sempre com uma crítica social pertinente, além de ensaios literários de grande categoria, máxime uma obra-prima sobre Kafka, presente na coletânea de ensaios “A Consciências das Palavras”.

Sobre a peça “Comédia da Vaidade”, vale lembrar de um episódio, no mínimo, curioso, contado por Canetti, quando leu a peça pela primeira vez para um restrito círculo intelectual em Viena. Canetti contou, numa passagem do terceiro volume das suas memórias, “O Jogo dos Olhos”, uma história sobre a leitura da comédia de costumes “Comédia da Vaidade”, num certo círculo intelectual de Viena que contou com a presença de James Joyce, então um jovem escritor irlandês em busca de fama e já conhecido por alguns intelectuais europeus.

Essa peça de Canetti se tornou um clássico com o tempo e, numa de suas mais famosas passagens, uma das personagens se barbeia sem precisar usar espelhos. Depois da leitura, Canetti foi apresentado a James Joyce, cujo único comentário sobre a peça foi um arrogante “eu me barbeio sem usar espelhos”.

Na hora, Canetti percebeu que ele, de quem se dizia dominar muitos idiomas, não tinha entendido nada da peça, toda ela escrita num autêntico dialeto vienense, e somente tinha entendido a parte em que a personagem se barbeava sem usar espelhos.

Ou seja, o “gênio” Joyce se sentiu intelectualmente inferiorizado ao não entender nada da leitura, feita no dileto alemão falado em Viena. A história da literatura do século XX consagrou James Joyce como um grande escritor, mas desconfio que muito disso vem de um hype pouco justificável, como convém a alguns círculos. Canetti, um verdadeiro monstro da literatura mundial, que nunca precisou de hype nenhum, insuperável enquanto memorialista, continua um tanto subestimado em razão de ser pouco lido, o que ajuda a entender o seu ressentimento e rancor no fim da vida.

Em “A Consciência das Palavras” também existe inclusive um ensaio sobre o arquiteto nazista Albert Speer, extremamente interessante.

Apesar de todo o background literário de fôlego, Elias Canetti se mostrou realmente um mestre da literatura, sua inequívoca expertise, principalmente nos livros de memória, verdadeiras obras-primas.

Canetti é provavelmente o maior memorialista da literatura mundial, absolutamente imbatível. Por mais que eu goste do brasileiro Pedro Nava, excelente, Canetti tem um estilo mais original. Ele escreve como se dialogasse com a nossa consciência.

Falo do escritor Elias Canetti porque aprendi muito com ele, não só com o seu olhar peculiar e único sobre muitas coisas, sempre com um tom desconcertantemente profundo e erudito, mas também aprendi sobre o quanto ele era humano, até nos defeitos que mostrou ter no fim da vida.

Em suas memórias, onde era genial, Canetti escrevia como se a voz dele se projetasse na nossa consciência, inclusive com os seus defeitos, os quais não escondia mas que se mostraram ser graves no fim da vida, denotativos de defeitos de caráter.

Foi para mim extremamente decepcionante, apesar de compreensível, tomar conhecimento dos defeitos de caráter de Canetti ao ler as resenhas sobre a obra póstuma do quarto volume de memórias, até hoje inédito no Brasil, não tendo a Ed. Schwartz (Cia das Letras) o publicado.

Eu li os três primeiros livros das memórias de Canetti ainda nos anos 90, publicados no Brasil pela Cia das Letras. Esses livros com certeza estão fora de catálogo. Não ter publicado no Brasil até hoje o quarto e último volume das memórias já indicava que algo estranho aconteceu.

O primeiro volume de memórias de Elias Canetti se chama “A Língua Absolvida”, lançado originalmente no fim dos anos 70. O segundo se chama “Uma Luz em Meu Ouvido”, lançado na primeira metade dos anos 80, e o terceiro se chama “O Jogo dos Olhos”, lançado na segunda metade dos 80.

Eu vou dizer porque tenho que dizer, não ligo para quem achar que é arrogante, pelo menos aproveite a minha dica, corra atrás e vá ler: se vc não conhece esses livros, vc não conhece a melhor literatura de memórias, a mais sofisticada, do século XX.

Canetti narra encontros com James Joyce, Bertolt Brecht, Robert Musil, Isaac Babel etc. O próprio Canetti é um peso pesado da literatura do século XX, mesmo que os ingleses tenham ficado muito ressentidos, com razão, quando o quarto livro de memórias dele foi lançado postumamente.

O quarto volume das memórias de Canetti abordava a vida na Inglaterra, país que Canetti viveu durante décadas, após antecipar o genocídio do Holocausto depois que a Alemanha anexou à Áustria, e não poupou críticas, do começo ao fim, o que soou inegavelmente como ressentimento.

Rubem Fonseca, o maior escritor brasileiro pós-moderno, bebeu na fonte de Canetti ao escrever a obra-prima de 1988, “Vastas Emoções e Pensamentos Imperfeitos”, especialmente citando as impressões que Canetti teve de Babel na Berlim no fim dos anos 20 do século XX, profundamente elogiosas.

Para o jovem Canetti, Babel era o mais brilhante intelectual, escritor, o mais inteligente e sensível artista que ele conheceu naquela época, mais até do que Brecht, com quem ele vivia se desentendendo nas mesas de bares e restaurantes da Berlim no fim dos anos 20.

Na Berlim do fim dos anos 20 do século XX, Brecht era o mais paparicado entre os intelectuais alemães, tendo lançado a sua obra-prima do teatro, “A Ópera dos Três Vinténs”, a qual Canetti, então jovem tradutor da icônica editora Malik de romances americanos para a língua alemã, seguindo a moda da época da cultura alemã de imitar em quase tudo os EUA, assistiu à estreia da peça de Brecht nos teatros de Berlim.

Canetti conheceu Brecht nessa época, assim como conheceu Babel, cuja fama como escritor já havia chegado à Europa Ocidental.

Apesar de Canetti antipatizar com a figura de Brecht na época, ele o reconhece como um artista e escritor brilhante, contra o qual ninguém poderia polemizar. Brecht tinha resposta para tudo.

De acordo com Canetti, Brecht parecia mais velho do que era. E escrevia os melhores poemas que ele pôde ler na literatura alemã da época.

O quarto livro das memórias de Canetti, publicado postumamente, é chamado “Party in the Blitz”, referência às festas que a sociedade inglesa fazia mesmo quando era bombardeada impiedosamente pelos alemães durante a II Guerra Mundial, como se isso não os afetasse.

“Party in The Blitz” é extremamente polêmico e foi muito criticado pela crítica literária inglesa, uma das melhores do mundo. A provocação à sociedade inglesa já começava no título do quarto volume das memórias e indicava o que estava por vir.

De fato, Canetti, em “Party in The Blitz”, escrito no fim da vida, depois de viver décadas na Inglaterra, destilou todo o seu rancor e amargo por nunca ter tido o reconhecimento que ele achava que merecia.

A crítica inglesa foi cruel na análise do livro, não só porque Canetti criticou grosseiramente a Inglaterra, mas porque, em inúmeras passagens, teceu comentários extremamente negativos e sem ética, transparecendo certa inveja, sobre medalhões da literatura inglesa.

Canetti atacou T. S. Eliot, aluno do grande crítico literário e poeta americano, Ezra Pound, Eliot que muitos consideram o maior poeta do século XX, sobre quem Canetti foi muito agressivo no livro, assim como atacou, de forma mais do que lamentável, a popular e famosa escritora irlandesa Iris Murdoch, de quem ele foi inclusive amante, o que causou perplexidade geral, uma vez que ele, todo o tempo do seu quarto volume de memórias, não tece um elogio sequer a ela mas apenas ataques impiedosos, a exemplo de afirmar que ela seria incapaz de uma única ideia original e coisas do tipo.

O caso extraconjugal de Canetti com Iris Murdoch era do conhecimento de sua esposa, Veza Canetti, também escritora e também judia sefardim de cultura alemã que vivia em Viena, quando conheceu o então jovem Elias Canetti, tendo com ele se mudado para Londres, fugindo do Nazismo.

Veza Canetti parecia tolerar muito bem e até mesmo aceitar os casos extraconjugais de Elias Canetti, que não eram poucos.

Clive James, o famoso crítico literário australiano radicado na Inglaterra, falecido em 2019, tinha não só razão mas motivos pessoais para detonar “Party in The Blitz”, o que fez em artigo no The New York Times na época do lançamento póstumo do quarto livro de memórias de Canetti, no mercado americano e inglês, o que aconteceu em 2005, depois de uma certa resistência do mercado editorial anglo-saxão em publicá-lo, já que havia sido lançado no original em alemão quase dez anos antes, logo após a morte de Canetti, ocorrida em 1994, aos 89 anos.

James escreveu uma biografia da escritora irlandesa Iris Murdoch, o que talvez tenha gerado aqui um pouco de desavença pessoal, mas ele soube escrever com racionalidade, tanto sobre o livro “Party in The Blitz” quanto sobre Canetti, o que, neste último caso, fez inclusive com muita elegância intelectual e a mais fina ironia, sem poupá-lo do extremo rigor com que Canetti costumava se debruçar, em suas memórias, sobre as outras pessoas.

O título da resenha de Clive James, que foi publicada no The New York Times, já dizia a que vinha: ” “Party in the Blitz” The International Man of Mystery”, onde ele descreve um perfil arrasador de Canetti como pessoa e como intelectual.

Segue o link para a resenha mordaz, ácida e não menos irônica de Clive James sobre “Party in The Blitz” (em alemão, o título original é “Nachträge aus Hampstead“, que poderia se traduzir em português como “Apêndices de Hampstead”, famoso bairro londrino):

https://www.nytimes.com/2005/10/02/books/review/party-in-the-blitz-international-man-of-mystery.html

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