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Decisão do TJDFT legitima escravidão financeira dos correntistas assalariados

Segue post de minha autoria publicado originalmente em meu blog anterior no site do Jornal GGN, na data de 03/05/2015.

Decisão do TJDFT legitima escravidão financeira dos correntistas assalariados

Por Alessandre de Argolo

Em recente acórdão prolatado pelo Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios (TJDFT) no julgamento de um recurso de apelação interposto por servidor público titular de cargo comissionado do Governo do Distrito Federal, lançou-se uma tese que, se criar escol no direito brasileiro, pode acabar por legitimar o que eu chamo de escravidão financeira daqueles correntistas pessoas físicas cuja única fonte de renda sejam os seus vencimentos ou salários creditados mensalmente em conta corrente.
O caso concreto versa sobre situação em que o servidor público, cujo salário bruto era de R$ 2.545,75 (dois mil, quinhentos e quarenta e cinco reais e setenta e cinco centavos), já contabilizado o auxílio alimentação, teve ilegalmente concedido pelo banco nove empréstimos, em várias modalidades, entre eles, empréstimos consignados e empréstimos cujas parcelas eram debitadas do saldo da conta corrente, cujo montante do saldo devedor somava, à época da propositura da ação, o valor de R$ 32.636,77 (trinta e dois mil, seiscentos e trinta e seis reais e setenta e sete centavos).
O motivo da propositura da ação foi que, durante cinco penosos meses, o servidor público em questão ficou praticamente com o saldo zerado na data do recebimento do salário, uma vez que o banco debitava unilateralmente todas as parcelas dos empréstimos concedidos, inclusive as parcelas em atraso, empréstimos estes que foram tomados em várias modalidades, tais como Crédito Direto ao Consumidor (CDC), adiantamento de salário etc.
Buscava-se com a ação, principalmente, uma revisão dos contratos dos empréstimos, de modo que as parcelas debitadas sobre a renda líquida mensal (renda creditada na conta corrente após os chamados descontos compulsórios – INSS, Imposto de Renda, Plano de Saúde – e os descontos referentes às parcelas dos chamados empréstimos consignados em folha de pagamento, aqueles cujas parcelas são debitadas diretamente no contracheque) ficassem limitadas a 30% (trinta por cento) da renda líquida mensal do servidor público, analogamente à previsão legal que expressamente determina que os empréstimos consignados não podem ultrapassar esse percentual da renda mensal do correntista assalariado (podem ser citados como exemplos, o inciso VI do art. 115 da Lei nº 8.213/1991, que dispõe sobre os Planos de Benefícios da Previdência Social e dá outras providências, e o inciso I do § 2º do art. 2º da Lei nº 10.820/2003, que dispõe sobre a autorização para desconto de prestações em folha de pagamento, e dá outras providências).
Além desse pedido revisional, que busca racionalizar a forma de pagamento dos empréstimos de um modo que conserva ou garante a dignidade da pessoa humana do devedor (art. 1º, inciso III, da Constituição Federal), evitando uma situação que deixa o correntista sem recursos para sequer comprar comida para sobreviver, pedido de revisão feito com fundamento nos arts. 6º, inciso V, e 39, inciso VIII, do Código de Defesa do Consumidor (Lei nº 8.078/1990), tendo como norte o inciso V do art. 170 da Constituição Federal, que introduziu no ordenamento jurídico-constitucional brasileiro o princípio geral da atividade econômica consistente na defesa do consumidor, a ação pedia uma indenização por danos morais, considerando os cinco meses em que o servidor público teve a sua renda líquida mensal integralmente comprometida pelos débitos das parcelas dos empréstimos feitos diretamente sobre o saldo de sua conta salário. Por fim, a ação requereu que os valores que ultrapassaram o limite de 30% (trinta por cento) da renda líquida mensal do servidor público fossem devolvidos em dobro ao consumidor ou, caso assim fosse entendido pelo Poder Judiciário, que houvesse a devolução simples dos valores excedentes.
A ação foi ajuizada com pedido liminar de suspensão dos lançamentos em patamares abusivos, de forma a que eles ficassem limitados a 30% da renda líquida mensal, pois a situação do correntista era periclitante: sem dinheiro para sobreviver, ele teve um pedido de renegociação do débito negado pelo banco, que disse que só faria o contrato de renegociação (juridicamente se chama novação do débito) se o correntista apresentasse um fiador para o novo contrato que consolidaria o saldo devedor, isso quando nenhum fiador foi exigido do servidor público quando o banco em tela inicialmente e ilegalmente concedeu os empréstimos. Como o servidor público não conseguiu arranjar o fiador, o banco negou o contrato de renegociação do débito.
Posta a situação nestes termos, o juiz de primeira instância negou o pedido liminar, sob o argumento de que, ao contrário dos empréstimos consignados, os empréstimos cujas parcelas mensais são debitadas diretamente no saldo da conta salário não sofrem qualquer limitação e é suficiente a autorização registrada no contrato para legitimar o banco a fazer o que fez, independentemente do fato do correntista ficar sem renda para sobreviver com dignidade.
Obviamente irresignado com essa decisão, o servidor público interpôs recurso de agravo de instrumento, o qual foi parcialmente acatado pelo TJDFT, por meio de decisão de lavra do desembargador Sérgio Rocha, que, numa decisão monocrática lúcida, citando jurisprudência do STJ e em estreita consonância com os ditames constitucionais, limitou os lançamentos das parcelas dos empréstimos feitos diretamente sobre o saldo da conta corrente a 30% da renda líquida mensal, de forma análoga ao que exige a lei quando se debruça sobre os empréstimos consignados.
Como corretamente observou o eminente desembargador relator do agravo de instrumento interposto pelo servidor público contra a primeira decisão interlocutória que havia indeferido a liminar de suspensão dos lançamentos dos débitos abusivos, os limites de comprometimento da renda do consumidor que atuam em relação às parcelas dos empréstimos consignados em folhas de pagamento devem ser observados também quando se trate do comprometimento da renda líquida mensal para fins de pagar as parcelas daqueles empréstimos que são debitados diretamente no saldo da conta corrente salário, ainda que por analogia, nos termos do art. 126 do Código de Processo Civil atualmente vigente, pois, conforme a feliz expressão do nobre desembargador relator daquele agravo de instrumento, “(…) onde a razão é a mesma, o mesmo deve ser o direito (ubi eadem ratio ibi eadem jus)”.
Dessa forma, o banco foi intimado da decisão monocrática e a situação foi equacionada, com os débitos lançados diretamente em conta corrente se limitando ao patamar de 30% da renda líquida mensal creditada na conta salário, o que permitiu ao correntista viver com a dignidade necessária, ainda que com uma parte de sua renda seriamente comprometida. No entanto, após o regular processamento da ação, ultrapassada a fase da instrução, sobreveio a sentença, a qual resgatou o entendimento da decisão que inicialmente havia concedido ao banco o direito de continuar a debitar as parcelas dos empréstimos de forma abusiva. O correntista interpôs recurso de apelação e ela foi distribuída para a mesma Turma Cível para a qual o agravo de instrumento havia sido distribuído, porém, não se encontrava mais na turma o desembargador que havia deferido a liminar e o resultado do julgamento foi desfavorável ao consumidor bancário, num acórdão que, sem qualquer exagero, legitima a situação de escravidão financeira observada neste caso concreto.
A ementa do acordão em tela restou assim redigida:
E M E N T A
DIREITO CIVIL E PROCESSUAL CIVIL. APELAÇÃO CÍVEL. CONTRATO DE MÚTUO BANCÁRIO. EMPRÉSTIMO CONSIGNADO. LIMITAÇÃO A 30% DO RENDIMENTO LÍQUIDO. EMPRÉSTIMO COM DÉBITO EM CONTA CORRENTE. INCABÍVEL LIMITAÇÃO DE DESCONTOS. LIVRE DISPOSIÇÃO CONTRATUAL. REPETIÇÃO DO INDÉBITO E COMPENSAÇÃO POR DANOS MORAIS. INDEVIDOS. LITIGÃNCIA DE MÁ-FE. NÃO OCORRÊNCIA.
1. Os empréstimos pactuados com desconto em conta corrente não se submetem às mesmas regras dos empréstimos consignados. Nesses últimos, o consumidor deve apresentar à instituição financeira declaração do órgão pagador que possui margem consignável livre, ou seja, comprovação de que não contraiu outros empréstimos acima de 30% de sua renda mensal.
2. O cliente é livre para dispor de seus rendimentos da maneira que melhor lhe aprouver, não havendo que se falar em limitação dos descontos em sua conta corrente.
3. Ausente conduta ou ato do agravado que ofenda a dignidade humana do correntista indevida é a compensação por danos morais.
4. Não comporta repetição do indébito das parcelas descontadas em conta corrente quando o mutuário livremente contraiu os empréstimos.
5. A ampla defesa e o contraditório são garantias constitucionais. Se a conduta processual do réu em sua defesa não se enquadra em nenhuma das hipóteses elencadas no artigo 17 do Código de Processo Civil, não há que se falar em litigância por má-fé.
6. Recurso conhecido e não provido.
Notoriamente, a concessão dos empréstimos nos quais figura como devedor o servidor público violou os limites de endividamento das pessoas físicas impostos pelo Banco Central do Brasil e que se encontram, inclusive, previstos em inúmeros dispositivos de nossa legislação, uma vez que a sua renda líquida mensal vinha sendo comprometida de uma forma totalmente irrazoável, o que ameaça inclusive a sua subsistência, pois todo o salário que o mesmo recebe estava sendo consumido com o pagamento das parcelas mensais dos empréstimos.
O inciso VIII do art. 39 do Código de Defesa do Consumidor, amplamente aplicável às relações bancárias entre clientes e instituições financeiras, conforme remansosa jurisprudência, incide neste caso a partir do momento em que o banco descumpre as regras editadas pelo Banco Central do Brasil que dizem respeito aos limites de comprometimento da renda líquida mensal do tomador que devem ser observados no momento de se conceder empréstimos bancários.
Um banco não pode emprestar dinheiro às pessoas físicas sem observar a efetiva capacidade de pagamento delas, nos termos do art. 2º da Resolução nº 2.682 do Banco Central do Brasil, de 21/12/1999, e do inciso III do art. 1º da Resolução nº 3.694, de 26/03/1999, também do Banco Central do Brasil, que foi o que foi feito no caso do servidor público aqui tratado, abusivamente e imprudentemente.
A Resolução n° 3.694 do Banco Central do Brasil, de 26/03/2009, que dispõe sobre a prevenção de riscos na contratação de operações e na prestação de serviços por parte de instituições financeiras e demais instituições autorizadas a funcionar pelo Banco Central do Brasil, na redação do inciso III do art. 1º dada pela Resolução nº 3.919, de 25/11/2010, vigente à época das contratações, anterior à redação dada pela Resolução nº 4.283, de 04/11/2013, expressamente estabelecia o que se segue:
“Art. 1º As instituições financeiras e demais instituições autorizadas a funcionar pelo Banco Central do Brasil devem contemplar, em seus sistemas de controles internos e de prevenção de riscos previstos na regulamentação vigente, a adoção e a verificação de procedimentos, na contratação de operações e na prestação de serviços, que assegurem:
(…)
III – a adequação dos produtos e serviços ofertados ou recomendados às necessidades, interesses e objetivos dos seus clientes; (Incluído pela Resolução nº 3.919, de 25/11/2010.)
(…)”
           
Por sua vez, a Resolução nº 2.682 do Banco Central do Brasil, de 21/12/1999, que dispõe sobre critérios de classificação das operações de crédito e regras para constituição de provisão para créditos de liquidação duvidosa, estabelece, em seus art. 2º, o que se segue:
 Art. 2º A classificação da operação no nível de risco correspondente é de responsabilidade da instituição detentora do crédito e deve ser efetuada com base em critérios consistentes e verificáveis, amparada por informações internas e externas, contemplando, pelo menos, os seguintes aspectos:
I – em relação ao devedor e seus garantidores:
a) situação econômico-financeira;
b) grau de endividamento;
c) capacidade de geração de resultados;
d) fluxo de caixa;
e) administração e qualidade de controles;
f) pontualidade e atrasos nos pagamentos;
g) contingências;
h) setor de atividade econômica;
i) limite de crédito;
II – em relação à operação:
a) natureza e finalidade da transação;
b) características das garantias, particularmente quanto à suficiência e liquidez;
c) valor.
Parágrafo único. A classificação das operações de crédito de titularidade de pessoas físicas deve levar em conta, também, as situações de renda e de patrimônio bem como outras informações cadastrais do devedor.
Como se observa, o Banco Central do Brasil efetivamente exige das instituições financeiras que observem uma série de dados dos clientes pessoas físicas na hora de realizar os empréstimos, que devem ser adequados às necessidades, aos interesses e aos objetivos do referido cliente, entre eles informações como situação econômico-financeira, grau de endividamento, limite de crédito, setor de atividade econômica, renda, patrimônio etc, tudo isso com a finalidade de prevenir situações em que o risco torne o pagamento algo de difícil senão impossível consecução, colocando em risco a saúde financeira da própria instituição.
Ora, é notório que a concessão de empréstimos que comprometem a integralidade da renda líquida mensal do cliente, que era detentor de cargo comissionado no Governo do Distrito Federal à época da concessão, depois de descontados do contracheque as parcelas dos empréstimos consignados, NÃO É, sob qualquer ponto de vista que se analise a situação, adequada às necessidades, aos interesses e aos objetivos do cliente, pois resta muito claro que tal atitude das instituições financeiras deixa o cliente em questão sem dinheiro para sequer subsistir de forma digna, criando uma situação, em verdade, absolutamente inadequada, violadora de seus direitos fundamentais, máxime a dignidade da pessoa humana.
Esse caso é de uma certa gravidade porque ele configura uma nítida situação de exercício arbitrário das próprias razões por parte do banco. NÃO é porque o banco é credor de uma série de empréstimos bancários que isso autoriza o lançamento unilateral e de uma vez só de várias parcelas na conta corrente salário do servidor público, ao ponto de comprometer significativamente a renda líquida mensal do titular da conta corrente na qual os débitos estão sendo lançados, que é inclusive uma conta que recebe crédito de natureza alimentar, uma vez que advindo de salário.
Em outras palavras, o banco, exorbitando dos seus direitos enquanto instituição financeira credora do servidor público, praticando uma nítida violação dos direitos dele enquanto consumidor de serviços e produtos bancários, não satisfeito de ter autorizado abusivamente a contratação de vários empréstimos bancários sem observar os limites de endividamento, um princípio exigido severamente pelo Banco Central do Brasil, até para fins de preservar o próprio Sistema Financeiro Nacional a partir da prevenção da inadimplência, a qual pode gerar, dependendo do grau em que é observada, um “efeito dominó” que põe em risco todo o sistema financeiro, ainda achou por bem debitar todas as parcelas dos empréstimos mensais, cuja forma de pagamento é por débito em conta, deixando a conta com saldo zero, o que aconteceu por vários meses consecutivos, mais de cinco meses, e somente deixou de acontecer quando o TJDFT deu provimento ao agravo de instrumento interposto pelo servidor público.
Tais atos praticados pelo banco são sumamente absurdos e inadmissíveis, flagrantemente ofendem os direitos do correntista enquanto consumidor e enquanto pessoa humana dotada de dignidade, pois o mesmo fica sem nenhuma quantia para sequer poder se alimentar, uma vez que toda a sua renda líquida mensal foi arbitrariamente apropriada pelo banco, sem qualquer razoabilidade ou proporcionalidade, situação equivalente à penhora ou gravame que tivesse recaído sobre os valores de natureza alimentícia creditados na conta corrente do servidor público, o que é proibido por força do inciso IV do art. 649 do Código de Processo Civil atualmente vigente.
O ordenamento jurídico-constitucional brasileiro estabelece como princípio geral da atividade econômica a defesa do consumidor, previsto no art. 170, inciso V, da Constituição da República Federativa do Brasil (CRFB). A mesma Carta Política brasileira estabelece como fundamento do Estado Democrático de Direito em que se constitui a República Federativa do Brasil a dignidade da pessoa humana, princípio positivado no inciso III do art. 1º da CRFB.
Há inclusive um abuso do direito do banco de receber as parcelas mensais dos empréstimos ilegalmente concedidos ao correntista, de uma vez só e de forma unilateral, de tal forma que compromete indignamente a sua renda mensal líquida, devendo ser observado o que dispõe o art. 187 do Código Civil atualmente em vigor para caracterizar a ilicitude do procedimento que vem sendo adotado pelo banco no presente caso concreto, dispositivo que foi direta e literalmente violado pelo acórdão que julgou a apelação.
De outra banda, o Código de Defesa do Consumidor (Lei nº 8.078/1990) fixa no ordenamento jurídico pátrio uma série de diretrizes legais que visam proteger os direitos do consumidor brasileiro, parte hipossuficiente da relação jurídica consumerista.
Vários dispositivos do Código de Defesa do Consumidor (CDC) foram violados pela atitude do banco neste caso concreto, quando se apropriou arbitrariamente da integralidade da renda líquida mensal do correntista proveniente de vencimento ou salário (cargo em comissão do serviço público do Distrito Federal), verba de natureza alimentícia, nos termos do art. 100, § 1º, da CRFB e, enquanto tal, insuscetível de sofrer penhora, nos termos do inciso IV do art. 649 do Código de Processo Civil (CPC) atualmente vigente, conforme anteriormente explicado.
Como exemplos dos dispositivos do CDC que foram violados pelo banco neste caso concreto, podemos citar os arts. 6º, incisos II, III, IV, V, VI, 39, incisos IV, V, VI e VIII, caput do 42, 51, incisos IV, VI, XV e § 1º, incisos I, II e III.
Estes dispositivos do CDC acima citados foram violados pelo banco quando ele, por exemplo, inobstante a baixa renda do servidor público, que já estava sensivelmente comprometida a partir do reiterado uso, ao longo do tempo, do total do limite do cheque especial (os extratos bancários anexados à petição inicial que comprovam que o correntista já há muito tempo era “refém” da utilização do total do limite do cheque especial), insistiu em realizar operações de crédito, situação que acabou por comprometer demasiadamente a renda líquida mensal do consumidor, a um ponto de zerar o saldo da conta corrente salário para pagar os débitos das parcelas dos empréstimos que eram previstas para serem lançadas automaticamente na conta salário sobre a renda líquida mensal, depois de descontadas no contracheque do servidor público as prestações mensais dos empréstimos consignados.
Em outras palavras, não houve por parte do banco a necessária observância das regras editadas pelo Banco Central do Brasil, bem como as que se encontram presentes em outras legislações aplicáveis ao caso concreto, que disciplinam os limites de endividamento das pessoas físicas a partir da apuração da renda líquida mensal e da capacidade de pagamento do consumidor, tudo isso feito sem que o consumidor tivesse sido prévia e corretamente alertado acerca dos riscos inerentes à situação.
Nessa linha de raciocínio, claramente foram praticados pelo banco métodos comerciais coercitivos ou desleais, bem como foi exigido do correntista vantagem manifestamente excessiva, prevalecendo-se da fraqueza ou ignorância do consumidor, tendo em vista seu pouco conhecimento ou condição social, para impingir-lhe seus produtos ou serviços, com a agravante de ter colocado, no mercado de consumo, produto ou serviço bancário em desacordo com as normas expedidas pelo Banco Central do Brasil, órgão oficial competente quanto à fiscalização e disciplina das operações financeiras realizadas pelas instituições que operam no Sistema Financeiro Nacional.
Portanto, é absolutamente improcedente a alegação do banco, feita em sua contestação, de que “(…) o autor pode comprometer o percentual que entender de seus rendimentos para honrar obrigações espontaneamente por ele contraídas, operações estas consubstanciadas em operações de mútuo bancário, nas quais foi-lhe disponibilizado crédito para ser restituído após certo prazo de tempo, de acordo com as condições aceitas pelo próprio autor, em prestações previamente acertadas” (!!), sendo irrelevante para a validade ou licitude de tal conduta do banco, enquanto instituição financeira que deve emprestar dinheiro com responsabilidade aos seus clientes, inclusive responsabilidade social no exercício de sua atividade econômica, que o servidor público, quando firmou os contratos dos empréstimos ilegalmente concedidos, sabia de antemão os valores fixos das parcelas mensais a serem debitadas em sua conta corrente e consignadas em folha de pagamento.
Ao defender tal tese, o banco confessa que NÃO tem nenhum compromisso com princípios básicos que vigoram em nosso ordenamento jurídico-constitucional, os quais incidem fortemente nas relações de consumo, a exemplo dos princípios da razoabilidade e da proporcionalidade, do princípio da dignidade da pessoa humana, direito indisponível, do princípio da defesa do consumidor e da vedação de práticas ilícitas como o abuso do direito de receber aquilo que emprestou de forma irrazoável e desproporcional, independentemente se a forma de pagamento está deixando o servidor público sem condições mínimas de sobrevivência diante do comprometimento total de sua renda com o pagamento dos empréstimos ilegalmente concedidos.
A repercussão geral, de que cuida o § 3º do art. 102 da Constituição Federal, das questões constitucionais citadas acima é notória, o que enseja a interposição de recurso extraordinário para o STF, sem prejuízo do direito de interpor recurso especial para o STJ para que o assim denominado Tribunal da Cidadania também seja chamado para se pronunciar sobre esse caso paradigmático, até mesmo porque o acórdão do TJDFT violou remansosa jurisprudência daquele colendo Superior Tribunal de Justiça, tendo inclusive feito uma interpretação do inciso V do art. 6º do CDC absolutamente improcedente quando disse que somente por causas supervenientes que tornem as parcelas dos empréstimos excessivamente onerosas é que cabe o pedido de revisão dos contratos, quando isso é falso, pois o dispositivo em questão também autoriza a revisão dos contratos que veiculem parcelas desproporcionais desde o início, sem qualquer necessidade de fatos supervenientes, sendo exatamente este o caso.
A princípio, a estipulação contratual que autoriza o banco credor receber seu crédito procedendo ao desconto do valor respectivo, diretamente na conta corrente de seu cliente, não é ilícita ou mesmo abusiva, uma vez que livremente acordada pelas partes. No entanto, verifica-se no referido processo que o desconto efetuado na conta corrente do servidor público atinge a quase totalidade do seu salário, quando não a totalidade, fato que compromete o seu próprio sustento e o de sua família.
A despeito da legalidade do procedimento normalmente utilizado pelo banco credor, para descontar as prestações que lhe são devidas, não se pode desconsiderar que, permitir a apropriação, pela instituição financeira, da quase totalidade dos recursos percebidos pelo devedor, importaria na violação do seu direito de dispor dos meios necessários para garantia de uma vida digna.
Dessa forma, até por uma questão de bom senso, é natural entender que tais descontos, feitos diretamente no saldo da conta corrente, devem ser limitados, aplicando-se, por analogia, in casu, as normas vigentes no ordenamento jurídico brasileiro que limitam as parcelas dos empréstimos consignados a 30% da renda mensal do tomador.
Constata-se, ainda, que o art. 11 do Decreto n.º 4.961/2004, regulamentando a previsão contida no art. 45 da Lei n.º 8.112/90, estabeleceu que o desconto máximo, em folha de pagamento de servidor público, atinente à amortização de empréstimos e débitos semelhantes, é de 30% dos vencimentos.
Ora, se em função do princípio da dignidade da pessoa humana, previsto no art. 1º, inciso III, da CF/88, o legislador houve por bem limitar os descontos em folha de pagamento no limite de 30% dos vencimentos, a mesma solução jurídica deve ser aplicada na hipótese de débitos lançados diretamente em conta corrente, na qual são creditados os rendimentos do titular.
No entanto, o entendimento do acórdão viola direta e literalmente o princípio da dignidade da pessoa humana quando admite que as instituições financeiras possam, livremente e apenas com base na autorização concedida pelo titular da conta corrente, dispor de toda a renda líquida mensal, independentemente do fato disso implicar riscos para a própria vida do consumidor, o que se pode constatar no seguinte trecho do referido acórdão, in verbis:
Cinge-se a controvérsia acerca da onerosidade das parcelas dos empréstimos pactuados entre o apelante (Servidor do GDF) e o apelado (BRB). É incontroverso, nos autos, que foram entabulados contratos de empréstimo com as seguintes modalidades: desconto no contracheque e desconto na conta corrente. Os empréstimos pactuados com desconto em conta corrente não se submetem às mesmas regras dos empréstimos consignados.
Os empréstimos descontados em folha de pagamento seguem a disciplina descrita no art. 45, parágrafo único, da Lei Federal nº 8.112/1990 combinado com o art. 10 do Decreto do Distrito Federal nº 28.195/2007 e art. 116, §2º da Lei Complementar Distrital nº 840/2011, que limitam os descontos em folha à no máximo 30% (trinta por cento) da diferença entre a remuneração do contratante e as consignações compulsórias.
Para obtenção do empréstimo consignado, o consumidor deve apresentar à instituição financeira declaração do órgão pagador que possui margem consignável livre, ou seja, comprovação de que não contraiu outros empréstimos acima de 30% de sua renda mensal. Essa exigência visa fazer com que o banco não contrate além desse limite e restrinja o valor dos descontos ao percentual legal permitido.
Sobre o assunto, atente-se para os julgados desta egrégia Turma:
(…)
Diverso é o caso dos outros empréstimos contraídos diretamente sobre a conta corrente, em que não se cogita de limitação de contratação, uma vez que a questão se insere na esfera de livre disposição de vontade do correntista. O apelante contraiu empréstimos junto ao apelado, em duas modalidades, dois consignados em folha e outros debitados na conta corrente, na qual se credita o seu salário.
Não existindo nenhum regramento que imponha limitação a tais descontos, não cumprindo ao Judiciário fazê-lo, uma vez que esta questão é pertinente à esfera da livre iniciativa das partes. Não é razoável exigir do banco que se atenha ao limite de 30% (trinta por cento) pedido pelo devedor, quando não há previsão legal para tanto, e quando o cliente optou em contratar os empréstimos de forma livre e espontânea.
A revisão fundamentada no desequilíbrio econômico-financeiro do contrato e onerosidade excessiva para uma das partes pressupõe acontecimentos imprevistos que alterem a situação fática original significativamente, de forma a inviabilizar o cumprimento do pacto. É o que prevê a regra geral da cláusula rebus sic stantibus, pela qual o contrato se mantém intacto enquanto as circunstâncias se mantiverem da mesma forma em que estavam quando da sua celebração.
In casu, a suposta onerosidade excessiva alegada pelo autor/apelante decorreu, na verdade, do fato de ter contraído empréstimos, repita-se, de livre e espontânea vontade, além do que sua capacidade financeira pode suportar. Portanto, a cláusula rebus sic stantibus não tem aplicabilidade na hipótese, uma vez que não houve alterações significativas ou acontecimentos imprevistos que autorizem a revisão do contrato e suspensão de sua força obrigatória, devendo ser observado o princípio do pacta sunt servanda.
Vale ressaltar que os empréstimos pactuados com autorização para desconto em contacorrente, por diminuírem os riscos de inadimplência para a Instituição Financeira, possuem condições mais vantajosas e taxas de juros menores que os demais. Por fim, não pode a autora/apelada atribuir ao Banco responsabilidade por sua situação financeira e comprometimento de todo seu salário, uma vez que contraiu os empréstimos de forma livre e consciente.
(…)”
(grifos e negritos por nossa conta)
Observe-se que o trecho acima citado contém uma passagem que concretiza nítida tautologia que cria uma petição de princípio, tudo para evitar reconhecer que a limitação que incide sobre os empréstimos consignados em folha de pagamento (nos quais as parcelas são descontadas diretamente do contracheque do servidor público) deriva precisamente da noção, baseada no princípio da dignidade da pessoa humana, de que o banco ou instituição financeira não pode pretender usar o salário integral do servidor público para quitar parcelas de empréstimos, sendo irrelevante que os débitos sejam lançados diretamente no saldo da conta salário do servidor público, pois a exigência continua sendo a mesma, sempre com base na dignidade da pessoa humana.
A tautologia está em falar sobre o limite de 30% que deve ser obedecido pelos bancos quando contratam empréstimos consignados e, depois, dizer que “Essa exigência visa fazer com que o banco não contrate além desse limite e restrinja o valor dos descontos ao percentual legal permitido”.
Observe-se que a tautologia está em justamente repetir a afirmação que já havia sido feita antes, por meio de explicação que, em verdade, nada explica. Óbvio que a exigência visa impedir que o banco cobre parcelas de empréstimos que ultrapassem o limite de 30% da renda líquida do servidor público. A questão é a razão disso ser assim, questão esta que não pode ser respondida meramente citando a lei, obviamente.
A razão do limite dos empréstimos consignados, que não podem ultrapassar trinta por cento da renda mensal do tomador do empréstimo, repousa justamente na ideia de que o mutuário deve ter condições de arcar com os demais gastos de uma forma que lhe dará uma vida digna, não fazendo qualquer sentido a afirmação de que, em relação à renda líquida mensal que é creditada na conta salário, não incidiria o mesmo princípio porque essa “(…) questão é pertinente à esfera da livre iniciativa das partes” ou “(…) o cliente optou em contratar os empréstimos de forma livre e espontânea”, como se, no caso dos empréstimos consignados, o cliente também não tivesse celebrado empréstimos de forma livre e espontânea ou como se tais empréstimos também não fossem pertinentes à esfera da livre iniciativa das partes.
Logo se vê a improcedência dessa argumentação, a qual não faz o menor sentido e é carente de uma lógica minimamente válida.
Se as instituições financeiras pudessem, validamente e dentro de uma interpretação albergada pela Constituição Federal, usar a íntegra dos salários dos seus clientes para pagar os empréstimos celebrados, obviamente que tal direito também existiria em relação aos empréstimos consignados, uma vez que não existe qualquer diferença entre uma situação e outra, em termos jurídicos.
O que existe é uma mera diferença na forma como os pagamentos das parcelas são realizados: nos empréstimos consignados, os débitos são realizados diretamente no contracheque do tomador e, no outro caso, os débitos são realizados sobre a renda líquida mensal creditada na conta salário. Nas duas situações, o que temos é um mutuário pagando um empréstimo, sem qualquer distinção substancial em termos de natureza jurídica do contrato. São ambas as operações meros e simples contratos de mútuo bancário.
Dessa forma, é necessário que o egrégio STF conheça do recurso extraordinário já interposto nos autos e diga, no julgamento de mérito, se viola ou não a dignidade da pessoa humana o fato de uma determinada instituição financeira poder se apropriar da integralidade dos salários de seus correntistas para pagar os empréstimos ilegalmente concedidos, o que faria com que todos os correntistas assalariados virassem vítimas em potencial dos bancos, considerando que todos eles poderiam encontrar-se numa situação de trabalhar apenas para pagar empréstimos, criando uma espécie de escravidão financeira que não interessa em nada ao país e à própria noção que se tem de pessoas livres dotadas de dignidade.
Ou seja, estaríamos incentivando inconstitucionalmente o superendividamento dos assalariados, criando condições mercadológicas bizarras, como a que proporcionará a existência de um determinado mercado em que os correntistas trabalharão exclusivamente para pagar empréstimos às instituições financeiras, as quais não se preocupam, em nenhum momento, com o fato dos correntistas, após quitarem as parcelas dos empréstimos, ficarem sem meios econômico-financeiros para viver com dignidade, importando apenas, neste cenário absolutamente irrazoável e desproporcional, os lucros obtidos com os empréstimos, cujas garantias são os próprios salários dos correntistas.
É para este cenário catastrófico que aponta o entendimento do acórdão do TJDFT ora comentado e, como se observa, existe nítida repercussão geral nas questões constitucionais veiculadas no referido recurso extraordinário, pois evitar que a escravidão financeira vire uma realidade é matéria de interesse de todas as pessoas que recebem o salário creditado numa conta corrente (conta salário), independentemente de classe social, sexo, etnia ou raça, idade etc.

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