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As leituras políticas incorretas dos ataques terroristas em Paris

Fico perplexo com certos comentários, com certas leituras políticas, inclusive a respeito da reação que suscitaram os ataques terroristas realizados em Paris na noite dessa sexta-feira, 13 de novembro de 2015, que deixaram um saldo, até aqui, de pelo menos 127 mortos, segundo fontes oficiais, e inúmeros feridos em estado grave. O grupo terrorista Estado Islâmico (EI) assumiu a autoria dos atentados.

Alguns fazem comentários deprimentes, como, por exemplo, lamentar que Chico Buarque não estivesse em Paris para ser uma das vítimas. Esses são os cretinos de sempre. No entanto, existe outro tipo de comentário que eu considero extremamente equivocado.

Falo dos comentários que comparam a reação aos ataques terroristas em Paris com a reação a fatos trágicos ocorridos no Brasil nos últimos dias. Teve um cidadão de Fortaleza que foi no perfil da presidenta Dilma Rousseff e comentou, em resposta à manifestação de solidariedade ao povo francês que ela registrou em sua página no Facebook, para dizer que não viu a mesma reação em relação a uma chacina que matou 12 pessoas em Fortaleza no dia de ontem, como se Dilma fosse insensível ao que aconteceu na cidade por não ter se manifestado no mesmo tom. Evidentemente que é um comentário totalmente errado, já que Dilma se manifestou como uma chefe de estado diante de um ataque terrorista brutal contra um país com quem o Brasil mantém excelentes relações diplomáticas. Violência urbana não é terrorismo, apesar de matar também. São situações diferentes. De modo algum a manifestação de solidariedade de Dilma pode ser interpretada como se a presidenta desse mais valor à vida de um cidadão francês do que à de um brasileiro. É uma obtusidade tratar as coisas dessa forma.

Existe outro tipo de comentário que eu também considero equivocado: é o que enxerga na solidariedade ao povo francês uma espécie de “colonização” política e cultural e compara com a reação supostamente tímida, quando não inexistente, principalmente por parte da grande imprensa, por exemplo, à tragédia causada pelo rompimento de uma barragem recentemente em Minas Gerais, na cidade de Mariana. Esse argumento pode ser expandido para qualquer outra tragédia, num país pródigo em tragédias, como é o Brasil.

Discordo desse tipo de crítica, por vários motivos. Considero inapropriada, impertinente, equivocada e meramente oportunista, da pior forma possível. O argumento se volta contra ele: Foi preciso esperar a reação da imprensa ao que aconteceu em Paris para criticar a alegada falta de atenção ao caso brasileiro. Ou seja, a suposta (e falsa) omissão já existia antes, mas os críticos não se manifestaram antes. E o que eles fizeram ou fazem além de criticar a imprensa? Provavelmente nada.

A comparação é ate irrazoavel. Num caso, temos um ataque terrorista deliberado, intencional. No outro, temos um acidente, que certamente tem os seus responsáveis, mas é muito diferente de um ataque terrorista como o que aconteceu em Paris, onde pessoas foram executadas por meio de detonação de granadas e tiros de armas automáticas (AK-47) quando estavam em restaurantes e num show de rock. A comoção ao que aconteceu em Paris é justificadamente muito maior. Não há nem como comparar. Comparar as duas situações é burrice.

Esse tipo de argumento é tipicamente brasileiro. Brasileiro, na média, é mestre em criar dissensos em cima de consensos, pois é do caráter nacional o desentendimento, a picuinha etc. Tudo isso fundamentado em argumentos muito ruins, o que é o pior de tudo. Esse é o caso: o crítico que usa esse argumento consegue contrapor uma tragédia à outra. Ele vê na comoção dispensada aos ataques terroristas em Paris algo nocivo, como se as pessoas fossem insensíveis ao que aconteceu em Mariana (neste ponto, o argumento se baseia até numa premissa falsa: É MENTIRA que a imprensa não deu atenção ao rompimento da barragem, simplesmente mentirosa a alegação, posso colocar aqui dezenas de links que abordaram o assunto). O argumento parte do pressuposto de que as pessoas são canalhas, desprovidas de qualquer sentimento humanitário. Explicar de onde o crítico retira isso exatamente, por que ele acha que a imprensa é tão ruim assim, ao ponto de apenas dedicar atenção aos fatos ocorridos em Paris mas não no Brasil, isso ele não faz. Ele está interessado em aparecer fazendo a acusação leviana. É isso. A comparação é absurda, enfim. No Brasil, houve um acidente. Na França, houve ataques terroristas. A comoção em relação aos ataques terroristas é naturalmente maior, pois são atos intencionais.

O argumento usado para acusar a grande imprensa serve para acusar Dilma Rousseff, exatamente como fez ontem um sujeito de Fortaleza no perfil da presidenta no Facebook, que criticou o fato dela não ter a mesma reação que teve em relação aos ataques em Paris quando 12 pessoas foram assassinadas na quinta-feira última, em Fortaleza. É mais ou menos o mesmo argumento usado pelos críticos que enxergam uma indignação seletiva na grande imprensa. Ou seja, para esse tipo de crítica, a presidenta Dilma Rousseff é igual à imprensa em sua indignação seletiva.

Acesse o link a seguir e leiam o comentário de um certo Geovane Sousa Portela: https://www.facebook.com/SiteDilmaRousseff/posts/1017967694923488

O argumento leva ao absurdo paroxismo de que sempre que formos manifestar indignação contra alguma coisa, sempre que formos manifestar solidariedade diante de uma alguma tragédia, teremos que lembrar de todas as tragédias anteriores, caso contrário, estaremos sendo injustos, omissos, silentes, tendenciosos, enfim, mal intencionados. Não dá. O argumento é muito ruim. Nunca deu certo isso de criticar alguém por se manifestar contra uma coisa errada comparando com a reação dela em relação à outra coisa errada. O suposto silêncio num caso não é conclusivo. Muitas vezes isso acontece por razões práticas: a pessoa não vai se referir a todos os problemas do mundo sempre que tiver que manifestar a sua indignação ou solidariedade em relação a um determinado acontecimento. A crítica, no caso dos que acusam a indignação seletiva da grande imprensa e de algumas pessoas, que trataram de forma diferente o caso do terrorismo em Paris e o rompimento da barragem em Mariana, foi até injusta: as situações são diferentes, incomparáveis. Não se compara terrorismo com acidentes. Isso deveria ser básico.

Para essas pessoas eu digo apenas o seguinte: é bom começar a perceber que o mundo é globalizado, cada vez mais. Ser brasileiro não significa deixar de ser humano e não poder sentir solidariedade diante de uma tragédia como essa que caiu sobre Paris. A solidariedade é universal. E o caso de Paris foi mesmo chocante, quando vemos que pessoas foram executadas aos montes, sem qualquer chance de defesa quando estavam meramente num show de uma banda de rock ou num restaurante. Saíram de casa para serem brutalmente assassinadas. A violência dos ataques em Paris explica por que causou tanta comoção. As pessoas se colocam nos lugares das vítimas, como aconteceu no ataque terrorista a Oslo, em 22 de julho de 2011. Aliás, essa é uma marca do terrorismo do Estado Islâmico, autor dos ataques a Paris: ele atua para que todo mundo se sinta pessoalmente ameaçado em sua individualidade, em sua forma de viver. Não existem alvos estratégicos, exatamente. O alvo são os cidadãos comuns, atacados em suas individualidades. É uma guerra contra a forma que as pessoas pensam o mundo, é um ataque contra os valores mais básicos defendidos nas democracias ocidentais. Nessa linha, todo mundo que não se ajusta ao que eles querem é um alvo, sem qualquer espaço para a tolerância.

Não adianta muito querer se afastar disso e alegar questões geopolíticas fomentadas pelo Ocidente. Isso é um erro. A questão não é essa. A questão é que o terrorismo jihadista do Estado Islâmico tenta se impor na base da violência e não está disposto a dialogar democraticamente, longe disso. Com eles, não há qualquer entendimento possível. Ou é do jeito que eles querem ou é morte, guerra, escravidão etc. Diante dessa postura, a única alternativa civilizatória é mesmo a guerra. A guerra termina sendo, paradoxalmente, a melhor resposta da civilização contra grupos como o Estado Islâmico. É uma guerra totalmente legitimada pelos fatos.

O Estado Islâmico, a propósito, é combatido por simplesmente todo o mundo. Nem os outros grupos extremistas islâmicos são aliados do Estado Islâmico. É unânime a repulsa que ele provoca. O Irã é contra, a Al Qaeda é contra, o Hezbollah é contra, a Arábia Saudita é contra, o Hamas é contra, a Rússia é contra, Israel é contra, os EUA e a Europa Ocidental são contra. Enfim, todo o mundo é contra o Estado Islâmico. Ficar com discursos que, na entrelinhas, esquecem o problema que é o Estado Islâmico para querer atacar a “culpa” do Ocidente na situação é uma asneira política completa. A mesma coisa aconteceu na época do atentado ao Charlie Hebdo, ocorrido em janeiro deste ano. Tinha gente que preferia criticar o jornal a condenar o ataque que matou os cartunistas e editores. É uma questão de razoabilidade aí, de se colocar no lugar das vítimas, de ter um pouco daquilo que nos faz seres humanos capazes de entender uns aos outros, por mais que tenhamos diferenças. Quando se perde essa capacidade e se passa a odiar o outro por simplesmente pensar e agir diferente, a violência vem naturalmente. Contra a violência, as pessoas têm o direito de se defender.

É importante ter em mente que se hoje foi em Paris, amanhã pode ser perfeitamente no Brasil, principalmente considerando que o país passou a sediar eventos internacionais importantes, como Copas do Mundo e Olimpíadas (não preciso citar exemplos de ataques terroristas em Olimpíadas para sustentar esse ponto, basta pesquisar, pois tem até filme de Hollywood sobre isso). O terrorismo em Paris interessa a todo mundo, inclusive aos brasileiros também, lógico. E cada vez mais isso será uma realidade para um país que se pretende ser importante no cenário internacional. Discursar “politicamente” contra a solidariedade genuína que as pessoas manifestam é uma falta de humanidade.

Quem tenta minimizar o ocorrido, criticando ora o Ocidente (supostamente “culpado” pelo que o Estado Islâmico faz, eles dizem: Se alguém decide decapitar outrem ou fuzilar pessoas barbaramente, lembre-se de que sempre é possível culpar outras pessoas e poupar os assassinos que permitem a acusação), ora a reação legítima que o inegável ato de guerra causará (procurar se defender de terroristas que matam qualquer um sem dó nem piedade agora virou objeto de “preocupação” de quem acha ser fuzilado enquanto se está num restaurante ou num show de rock algo banal, digno inclusive de ser ignorado, pois o que importa é se preocupar com a reação do governo do país vitima do ataque, ao passo em que os terroristas, ah, esses podem continuar explodindo e fuzilando friamente as pessoas que não serão objeto de qualquer preocupação), deveria ter a oportunidade de vivenciar uma experiência dessas (por exemplo, estar num show onde pessoas fortemente armadas entram e começam a atirar em todo mundo que vêem pela frente) para nos contar depois como foi. Se conseguisse sair vivo, claro.

O fato é que a França tem o direito e o dever de se defender na situação. Nenhum país sério e decente vai aceitar candidamente que grupos pratiquem em seu solo atos de terrorismo e de guerra como os que foram praticados ontem em Paris. O país tem o direito e o dever de se defender. O povo está morrendo brutalmente apenas porque é cidadão do país. A situação é muito mais séria e grave do que fatos isolados que fazem a festa dos oportunistas de plantão. Retórica de brasileiro de esquerda bunda-mole (que não são todos, frise-se, mas apenas uma parte), que mal consegue defender a honra dos grupos políticos que integra (são chamados de “ladrões” e “safados” e ficam se borrando de medo, por exemplo), é descartável.

No Brasil, é comum a confusão e a perda de foco quanto ao que importa. Brasileiro, na média, é meio voador, barraqueiro e gosta de picuinha. Se você deixar, sempre considerando o padrão médio que se vê por aí, um brasileiro tomar uma decisão num momento importante, que afetará a vida de muitas pessoas, a chance de todo mundo “entrar pelo cano” é grande. No Brasil, a impressão que se tem é que as pessoas são criadas e formadas para escolher errado, para decidir errado. Falta objetividade, noção correta da realidade. Falta bom senso. Tudo isso explica certas opiniões em relação à reação que a França terá depois de ter sido atacada brutalmente. Eles se preocupam com isso e não com a grotesca ação terrorista. Eles acham que é mais um caso policial brasileiro, daqueles em que a classe média branda “bandido bom é bandido morto”.

Os comentários de boa parte dos internautas brasileiros que se autodeclaram “de esquerda” são qualquer coisa de ridículos. Eles realmente acham que a culpa do Estado Islâmico fazer atentados é de países como a França. Para eles, o Estado Islâmico é exclusivamente uma criação dos países que investiram na derrubada de Bashar Al-Assad, o que é falso. O Estado Islâmico cresceu no bojo de um movimento jihadista global cujas raízes contemporâneas foram lançadas pela Al Qaeda. É um movimento internacionalista que não se restringe a questões locais do Oriente Médio, seja na Síria, seja no Iraque. Se grupos paramilitares, embrionários do EI, se mimetizaram entre os vários grupos em conflito na guerra civil síria e conseguiram acesso a armas, isso não significa que os países que financiaram tais grupos conscientemente concordaram com a proposta da jihad global do EI. A conclusão não se se segue da premissa. O Estado Islâmico conta com adesão maciça de pessoas do norte da África e inclusive da Europa (geralmente, descendentes de muçulmanos, muitos deles jovens que mal chegaram à casa dos 20 anos). Existe um movimento ainda pouco estudado e compreendido.

Há um mercado de informações organizado que alimenta grupos como o EI. Pensar que tudo foi um acidente de percurso, algo mal planejado pelas potências ocidentais, é puro desvario e ignorância. Ao contrário do que dizem, a visão de mundo que permitiu que surgisse o EI já existia há muito tempo e, mais recentemente, sempre esteve presente e organizada em sites, blogs, várias entidades islâmicas e nas redes sociais. Eles se valeram de técnicas de propaganda veiculadas para uma sociedade de massas. Foi uma evolução de uma situação pré-existente, com um certo “romantismo” na estratégia do EI de conquistar adeptos. Camile Paglia, em recente entrevista publicada na Folha de São Paulo, tem muita razão quando identifica o elemento da sede por “ação física e aventura”, ao fato de integrarem uma “irmandade”, na adesão de jovens muçulmanos nascidos e criados na Europa. Portanto, o EI não foi uma mera estratégia de atuação geopolítica equivocada do Ocidente. Ele surgiria mais cedo ou mais tarde. A guerra civil na Síria apenas proporcionou, contribuiu ou facilitou que isso acontecesse. O que motiva grupos como EI são conceitos jihadistas fundamentalistas, o ataque aos infiéis e a conversão deles nem que seja na base da força ou da violência. O EI defende o expansionismo islâmico de outras épocas históricas. Não é uma coisa restrita ao nosso tempo, a não ser na forma como eles hoje atuam. Ideologicamente, a semente do EI é intrínseca a uma certa interpretação do islamismo.

Comentando um post citado por um amigo em seu perfil no Facebook, fiz algumas observações que considero pertinentes sobre os ataques terroristas de ontem contra Paris, de autoria atribuída ao Estado Islâmico. O post citado falava sobre o papel de países como EUA e França tiveram ou têm na forma como o EI conseguiu surgir e atuar no cenário internacional. Numa das passagens do post, o autor acusava a França de também praticar o que considerou “terrorismo”, da mesma forma que o EI faz. Transcrevo o trecho do post para que fique mais clara a ideia:

“(…” a França há meses vem atacando áreas supostamente onde o Estado Islâmico atua, todavia matando civis também. Terroristas da mesma laia. O problema é que um lado pode cometer atos terroristas, o outro não. Terrorismo é uma questão conceitual e depende de que lado você se encontra. Infelizmente morre gente inocente dos dois lados. Quem realmente tem culpa está sentado com sua bunda protegida.”

Comparar supostas mortes por “erros” com as mortes de ontem em Paris é um erro e tanto, além de ser um argumento absurdo, totalmente inválido. É dizer que a França conscientemente quis as alegadas mortes dos civis citadas, como os terroristas de ontem intencionalmente quiseram matar as vítimas dos atentados em Paris. Não enxergar a diferença é lamentável. Há uma diferença fundamental entre uma situação e outra: os alvos originais eram diferentes, as intenções eram diferentes. Sobre ser o terrorismo uma questão conceitual que depende do lado em que se encontra, eu até posso concordar com isso. Com o que eu não posso concordar é dizer que o que o EI fez e faz não é terrorismo. Aliás, faltou quem escreveu essas linhas se pronunciar expressamente sobre isso. Apesar de ter dito que eram “terroristas da mesma laia”, não houve a condenação expressa ao que o EI fez e ainda faz. É como se o EI estivesse reagindo com legitimidade aos ataques franceses.

Eu considero um grave problema de certos discursos tentarem relativizar ou minimizar as ações do grupo terrorista Estado Islâmico, usando, para isso, acusações contra ações militares desastradas de países ocidentais. Uma coisa não justifica a outra. No máximo, são ambas as ações condenáveis, sendo importante perceber que as ações de grupos terroristas como o EI, especificamente, não dependem exatamente do que os países ocidentais fazem em suas incursões no Oriente Médio. O que motiva grupos como o EI são questões relativas à interpretação que eles fazem do islamismo (o conceito de jihad que eles assumem como correto). Isso independe da política externa dos países ocidentais para o Oriente Médio. Fazer essa confusão apenas ajuda o EI em sua escalada de terror.

O amigo em questão, onde o comentário foi postado, argumentou com razão que “Acredito que o Ocidente viu nesse movimento jihad uma oportunidade que usa-los para seus fins escusos (desestabilizar países não afinados com suas políticas), mas esqueceram que poderiam provocar uma reação contrária.”

Isso se aplica certamente à Síria. Nisso eu concordo com ele. Os ocidentais não aceitam que Assad consegue manter esses radicais sob controle. A mesma coisa Sadam Hussein (não quero igualar os dois, obviamente, mas sim falar do papel de controle que eles exerciam nos seus países).

Mas temos que combater o terrorismo islamofascista do EI. É um erro das esquerdas enxergarem neles um aliado circunstancial. Não são aliados de ninguém. São inimigos de todos nós. Observe que, por vias tortas, o que a esquerda critica nas potências ocidentais pode acabar sendo o que ela mesma pratica, de forma diferente: deixa de atacar o EI quando deveria estar fazendo isso.

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